terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Evolução e sexualidade

Lógica da evolução por suplemento (2) : o papel da sexualidade

97. Para responder a esta questão, retomemos o círculo homeostático uma espécie animal qualquer. Para compreender a evolução, há que ter em conta os 3 (ou 4) doubles binds que dissemos (§ 80), na sequência, sem dúvida, de tremores da cena ecológica ; tratar-se-á, de cada vez, de substituir um círculo homeostático por um outro um pouquinho diferente, que continuará a andar bem, sem que haja nenhuma razão para excluir o jogo das oscilações entre os 3 ou 4 doubles binds, suplementares uns aos outros. Para ter lugar, essa substituição terá que ter que contar com cumplicidades dentro do círculo homeostático, que todavia não façam parte da sua lógica nem das suas oscilações. Acontece que as hormonas esteróides da sexualidade têm essa estranha lógica, de estarem dentro e de ao mesmo tempo pulsionarem para o outro de fora, de terem origem no metabolismo (de certas glândulas) e deitadas no « meio interior » em que a homeostasia é regulada, escapando no entanto à economia da nutrição. Ela é a inversão desta, uma contra-economia, um desperdício desatinado (§ 39). Ao invés de todas as outras células especializadas, estas glândulas não estão ao serviço da alimentação de todas, formam outro sistema ao serviço da espécie, em excesso em relação à sua lei fundamental. Se se pensa no que se passa com as espécies assexuadas, pode-se dizer que a reprodução sexual das espécies animais implicou a invenção da morte (dos cadáveres), da bipolaridade fêmea / macho, da filiação e da fraternidade e portanto do parentesco, das condições da aprendizagem. Não há razão para espantos quando se encontram estes motivos no discurso psicanalítico sobre a sexualidade humana enquanto sempre-já submetida à lei. Foi uma espécie de segunda invenção da vida, de que o resultado foi a imensa diversidade das espécies. Sucede por outro lado, segundo J.-D. Vincent, que as hormonas sexuais têm um papel decisivo na embriologia do cérebro, uma plasticidade espantosa entre hormonas machas e fêmeas, a possibilidade em certas circunstâncias de virem tomar lugar no genoma para a síntese das proteínas ; têm também um papel fundamental nas metamorfoses dos invertebrados e dos vertebrados. Ora, a ultrapassagem desse curiosíssimo fenómeno das metamorfoses teve como termo – tanto nos invertebrados como nos vertebrados – a formação de espécies endogâmicas de maneira bem mais estrita do que nas espécies menos evoluídas, como se a reprodução sexual, tendo entrado muito cedo na evolução, tivesse acabado por ser de certa maneira a sua finalidade. Mais ainda, no cimo dos vertebrados, ela deu origem a espécies classificadas como ‘mamíferas’, em que o sistema de reprodução das espécies, até aí feito através de ovos postos no exterior, veio alojar-se no ventre e nas mamas das fêmeas : esta revolução da anatomia e da fisiologia do sistema de nutrição pelo sistema (terceiro) da reprodução sexual não teria nada a ver com as hormonas esteróides ? Na sequência destas reflexões, o texto de referência esboça uma hipótese[1] sobre o papel eventual das hormonas sexuais na evolução (verificável talvez na embriologia), que não é possível desenvolver aqui mas que se prende com o papel (suplementar, de sublimação) da sexualidade na evolução histórica das sociedades humanas.
98. Para começar, espécie endogâmica como as outras mamíferas, as sociedades humanas deram-se fronteiras de endogamia bem mais apertadas, fazendo da troca das mulheres – tornadas elemento ultra-precioso da reprodução - um laço social principal, enquanto que a sexualidade excessiva (as mulheres não são já limitadas pelo cio) era interdita ente gente do mesmo ‘sangue’ ou da mesma ‘carne’. Tal como as fêmeas dos outros primatas, as mulheres são menos robustas do que os homens, por um lado, uma boa parte do tempo embaraçadas com gravidezes e aleitamentos, e portanto tendo que ser protegidas, por outro ; a lei da guerra parece ser a razão principal desta troca generalizada[2].
99. Para compreender a génese desta lei, há que seguir a evolução das ‘forças’. Os físicos mostraram que as forças constitutivas da matéria – nucleares, electromagnéticas e gravitacionais – são permanentes e atractivas, o que já tinha espantado muito Newton, porque ele tinha desenvolvido a sua mecânica em torno de forças ocasionais, por assim dizer locais. Pode-se dizer que na terra as primeiras forças não-atractivas foram de ordem biológica, primeiro as membranas celulares, depois as forças musculares de mobilidade em geral, de preensão pela boca na predação (Leroi-Gourhan), as forças das lutas. O neo cortex dos mamíferos tornou possível a com-preensão, o desenvolvimento de estratégias para a preensão. Foi sobre esta compreensão que a linguagem sonora se veio enxertar (Vygotsky) e içar a capacidade dos humanos[3] a formarem sociedades mais vastas, que têm antes de mais as finalidades dos mamíferos, alimentarem-se e defenderem-se. As suas unidades sociais terão inventado, no nó das suas diversas linhas (alimentar-se, defender-se, compreensão estratégica, linguagem), um tipo de força atractiva não-física, a dos paradigmas das unidades sociais que atraem cada um dos seus agentes para cumprirem os usos da unidade para assegurar a alimentação a e a defesa (sozinhos, eles perdem-se diante da lei da selva). Ora, esses paradigmas implicam na sua lei atractiva o interdito do incesto, o que significa que a moderação das ‘envies’ sexuais excessivas faz parte do nó paradigmático.
100. A invenção da linguagem e mais tarde da escrita (técnica de inscrição durável de algarismos para contar e calcular e da linguagem oral) esteve na origem da quarta grande linha evolutiva, a das inscrições numa matéria de empréstimo, que se desenvolveu no Ocidente sob duas formas de instituições, uma de origem grega, a escola, outra de origem judaica, a igreja cristã. A transmissão da herança escriturária – e é a razão de fundo que faz dela uma linha à parte da das casas, onde todavia a linguagem oral tem um papel decisivo – faz-se sempre por aprendizagem, com certeza, mas fora do parentesco, já não entre pai e filho ou entre mãe e filha, mas entre mestre e discípulo, por ‘vocação’’ (§ 51). É por isso que se trata de instituição : o parentesco está excluído dela, isto é, a reprodução sexual, a sexualidade, em resumo a natureza ou a ‘phusis’. Que a igreja seja ‘sobre-natural’ (na latinidade, o seu clero é celibatário)[4] e a escola, poder-se-ia dizer ‘meta-física’, é efeito da relação essencial que elas têm à leitura e à escrita, como diferentes da natureza. E é a sublimação freudiana – deslocamento das energias sexuais excessivas para motivas actividades não-sexuais, as ‘envies’ espirituais e de conhecimento em vez das ‘envies’ das casas (desde os prazeres da mesa até à glória do poder) – que parece dever ser invocada para compreender a relação suplementar destas instituições às casas que lhes fornecem os seus agentes e a respectiva alimentação.
101. Estas duas instituições constituíram uma linha marginal à do parentesco. Elas encontraram-se na passagem do 2º ao 3º século e fizeram uma trança, na elaboração da teologia cristã, que foi buscar as categorias filosóficas de Platão para se constituir (Clemente de Alexandria e sobretudo Orígenes). Foi a fortuna da futura Europa, já que a primeira grande etapa dessas instituições de escrita após o afundamento da primeira modernidade do Mediterrâneo, do império romano do ocidente, foi a generalização religiosa da igreja imperial às sociedades chamadas bárbaras, a constituição da Cristandade. A igreja do livro envolvia toda a gente, mesmo os analfabetos. E depois a invenção das universidades medievais, misto de escola e de igreja, se dizer se pode, que colocou Aristóteles no programa escolar (aliás um tanto platonizado). A terceira etapa foi a do estilhaçar da Cristandade pelo protestantismo que a invenção da imprensa tornou possível, ambos tendo precipitado a separação progressiva das duas instituições. A quarta foi a da invenção dos laboratórios científicos onde, como Newton escreveu, geometria e mecânica de juntaram no seio da filosofia natural : será o que revolverá a escola, introduzindo as mãos e os instrumentos técnicos de medida na busca do conhecimento. Esta mecânica encontrava-se já em instituições quase modernas como os estaleiros navais : era a técnica dos usos que abandonava as casas dos artesãos das cidades, assim como por outro lado as manufacturas justapunham teares antes das fábricas heterárcicas que a máquina a vapor ia tornar possíveis como última e revolucionária etapa. Foi a conjunção da escrita escolar e da técnica, este duplo passo, quer nos laboratórios quer nas fábricas industriais e capitalistas, que garantiu o triunfo da escola sobre a igreja[5] : é agora a escola da escrita que envolve toda a gente e torna possível e necessária a democracia política, assumindo a laicidade. Foi também esse duplo passo que quebrou as casas em instituições e famílias. A reprodução sexual permanece excluída das instituiçõess em que trabalhamos, como dantes da escola e da igreja, as energias sexuais têm que ser sublimadas. N. Elias contou a pré-história dessa sublimação, a génese do ‘super-ego’ da civilidade europeia nas cortes das monarquias : ele descobria assim o ‘pendant’ na nossa modernidade da lição de Lévi-Strauss sobre as sociedades dos inícios humanos. Com efeito, pode-se dizer que a importância acrescida da escola e dos médias na educação das pessoas, a entrada massiva das mulheres no mundo do trabalho e a descoberta da pílula desembocaram nas sociedades ocidentais na diminuição súbita do peso do patriarcado, da autoridade social sobre a sexualide, primeiro juvenil e feminina, numa verdadeira ‘revolução sexual’, cuja dimensão política se manifestou estrondosamente nas décadas de 60 e 70. Inventada no início da evolução biológica, a sexualidade liberta-se da sua função reprodutora e torna-se erotismo acessível a toda a gente, no final – a nossos olhos – da evolução histórica.
102. Nem Lévi-Strauss nem Elias teriam sido possíveis sem passar por Freud. Que a psicanálise tenha dificuldade em ser recebida como ciência, que nela a sublimação permaneça pouco trabalhada, são índices de como este motivo do suplemento será sem dúvida difícil de elaboração satisfatória. Ele consiste na maneira como se tece o nó dum double bind, dum duplo laço – nem ‘um’ nem ‘dois’, ‘um duplo’, já que nenhum existindo sem o outro, indissociáveis – que contém o excesso de energia duma cena de circulação dada por uma (outra) força estriturando-a (inibição de alguns elementos) e torna essa energia, tornando-a oscilante, adaptável à circulação da nova cena, suplementar. A dificuldade reside em que se trata, em certo sentido, do enxerto duma homeostasia nas suas pequenas repetições noutra homeostasia nas suas pequenas repetições. Se se pensa na sequência evolutiva seguinte – unicelular / organismo com circulação de sangue / rede neuronal / usos e linguagem na unidade local de habitação / sociedade global -, pode-se perceber que é o que era (e não deixa de ser, é claro) regulador na homeostasia na cena suprida que é inibido estritamente na cena suplementar : as células especializadas na passagem do primeiro ao segundo, as hormonas do paleo-cortex na do segundo ao terceiro, os gestos (‘primitivos’) e os ruídos dos hominídeos na do terceiro ao quarto, as unidades locais privadas na última passagem.
103. Um pequeno parêntesis. Creio que há que pensar (para melhor agir) que as diversas sociedades actualmente em relação entre elas (a chamada globalização) não têm o mesmo percurso histórico, nomeadamente no que diz respeito aos dois tipos de instituição de escrita que se acaba de evocar (mesmo entre países de tradição ocidental : protestante, católica ou ortodoxa e diferentes épocas de alfabetização). É por isso que não surpreende que estas diferenças temporais coloquem problemas muito graves. Pode-se compreender que o anti-ocidentalismo de numerosos clérigos do Islão (não falo de terrorismo, que é um caso de polícia) é comparável à rejeição da modernidade pela Igreja Católica até aos anos 1960, que também precisarão de tempo histórico, a medir talvez em termos de gerações. Enquanto que as civilizações asiáticas, tão antigas, com uma longa tradição de escrita e sem o ‘absoluto’ do Monoteísmo, não tiveram este tipo de obstáculos na sua modernização acelerada. A questão que está aberta, mais talvez do que um ‘choque’ de civilizações, é a maneira como estas culturas asiáticas, sem a operação de definição nas suas tradições, vão (ou estão a) reagir às ciências não matemáticas, que enxertos resultarão daí. O problema das sociedades de África « mal partida » é sem dúvida que elas eram ainda tribais há duas ou três gerações : quantas gerações lhes serão precisas para uma modernização consequente com as suas tradições, permitindo-lhes escapar à exploração neocolonial das multinacionais ? A maneira como Mandela, Kofi Anan e tantos outros Africanos se tornaram personagens históricos mostra que não se trata duma questão de racismo ; há que dar atenção às diferentes temporalidades das sociedades, às suas ancestralidades retiradas. Por sua vez, os Ocidentais poderão aprender com estes Outros, em termos de solidariedade, o que séculos de individualismo de ‘almas’ e de ‘sujeitos’ nos fizeram perder ; esperemos inversamente que as grandes civilizações asiáticas ganhem, com a tecnologia, algo da ‘liberdade’ ocidental e saibam de imunizar do nosso individualismo acérrimo.


[1] Neste caso, trata-se apenas de ligar coisas conhecidas mas disseminadas.
[2] Pode suceder que o quadro quase feminista das ilhas de Trobriand descrito por Malinowski não tenha sido possível senão pelo isolamento insular da tribo, condição necessária, talvez não suficiente.
[3] A sua aprendizagem pelas crianças iça-lhes a voz até às receitas dos usos aprendidos, poupando-lhes o esforço impossível de os descobrir sozinhas ; ao receberem as palavras com as quais a comunidade pensa, as vozes delas aprendem muito depressa a pensar.
[4] É o sentido da oposição entre espírito e carne no Novo Testamento. Esta é a ordem do parentesco, em que a reprodução sexual tem o seu lgar, sem dúvida, mas que não é visada pore la mesma. Um dos equívocos mais graves sobre a sexualidade foi a interpretação muito tardia das narrativas míticas sobre o nascimento virginal de Jesus como indicando que Maria tenha ficado virgem toda a sua vida, quando no entanto os evangelhos nomeiam os irmãos e irmãs de Jesus, um deles, Tiago, tendo-se tornado o principal dirigente da igreja de Jerusalem, com quem Paulo teve desavenças. Aquelas narrativas não visavam o sexo : o recém-nascido, à maneira de Isaac, Samuel e João Baptista, tinha sido dado por Deus, tinha um destino messiânico, não viera da carne, da ordem do parentesco. Foi o maniqueismo outras correntes anti-sexualidade do 3º século que estão na origem do que se chama erradamente moral judaico-cristã : deveria dizer-se helenístico-cristã, já que nas Bíblias, hebraica e cristã, não há vestígios dela.
[5] Que o cristianismo, pelo seu melhor como pelo seu pior, esteja retirado nas estruturas da civilização moderna, incompreensível sem isso como sem filosofia nem ciências, não dá nenhuma hegemonia ‘simbólica’ às Igrejas actuais, da memsma maneira que a Gréica actual também a não tem por os seus antepassados terem inventado a filosofia e o discurso científico (lógica, geometria). Com efeito, a modernidade instituiu-se laica, é isso a « morte de Deus » (Nietzsche) : tanto o crente como o anticlerical têm que aceiar a parte ancestral do outro.

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