segunda-feira, 23 de novembro de 2015

AS CIÊNCIAS DAS SOCIEDADES NUMA ABORDAGEM FENOMENOLÓGICA



É um texto muito ambicioso que pretende propor uma definição de sociedade que seja válida para todas as sociedades humanas de que antropologia, história e sociologia se ocupam. Uma tal definição não existe confessadamente entre os praticantes dessas ciências, só mesmo um filósofo podia ter 'peneiras' de o conseguir.

Definição e laboratório científico
O motivo fenomenológico de duplo laço
A questão da definição de sociedade em geral
A lição de Lévi-Strauss: interdito do incesto, logo exogamia
Paradigma de usos e costumes
Para definir sociedade
A invenção da agricultura: organigrama das sociedades agrícolas enquanto regiões autárcitas
Cosmopolitismo da Antiguidade greco-romana e Cristandade medieval
Organigrama das sociedades modernas: das autarcias à heterarcia
A escrita do conhecimento e do pensamento
As duas primeiras grandes etapas da Modernidade
Os três duplos laços transversais das sociedades modernas
A lógica destes duplos laços modernos
A questão da democracia
Do lado das famílias, dos cidadãos
A mutação do ano de 1968
A terceira etapa da Modernidade é a actual
A questão do tempo de trabalho


1. Entre os quatro grandes tipos de fenómenos com história científica – da gravitação os astros, da alimentação os vivos, da habitação as sociedades humanas e da inscrição os textos ocidentais do saber –, as ciências pertencem à última delas, aliás aos seus últimos quatro séculos (em vinte e quatro, contando a partir da invenção socrática da definição nos textos de Platão e de Aristóteles, século IV a.C.); as que se ocupam das sociedades são dos dois últimos séculos, mas manifestam actualmente uma notável multiplicação disciplinar. Quanto à história das sociedades, ela situa-se no prolongamento da evolução biológica dos mamíferos humanos, sem que haja separação entre ambas, ao contrário do que dá a entender a maneira como as ciências das sociedades se destacam das biologias; não se trata apenas das dificuldades em datar cortes entre evolução de bípedes primatas e pré-história de humanos, entre biologia e paleontologia, mas também de ter em conta que a cena da evolução biológica foi fortemente alterada a partir da invenção da agricultura e está hoje ameaçada na sua condição ecológica: um dos problemas capitais em ciências das sociedades reside justamente no lugar que elas reservam (ou não) à constituição biológica dos humanos, a especificidade do parentesco, da alimentação, doença, fome e morte.

Definição e laboratório científico
2. Assim como não é frequente os filósofos interrogarem-se sobre a razão filosófica de ser da definição, também não será costume que cientistas e filósofos das ciências se interroguem sobre o estatuto epistemológico do laboratório[1]. Ora, trata-se das duas maiores invenções da história gnosiológica do Ocidente, dos Gregos a primeira, dos Europeus a segunda. Que definição e laboratório científico permaneçam desapercebidos da grande reflexão filosófica e filosófico-científica, isso dever-se-á a tratar-se de duas operações de escrita violentas sobre a chamada ‘realidade’ que essa reflexão busca conhecer, donde são abstraídos os ‘definidos’ e os ‘laboratorizados’, arrancados ao contexto que lhes permite existirem, lhes dá possibilidades de se movimentarem. A violência da abstracção é bem conhecida da pedagogia escolar, é o que é mais difícil de conseguir que se aprenda, e talvez se possa dizer que é por ser ‘violenta’ que há que a dissimular para lhe enobrecer os frutos como ‘conceitos’, ‘ideias’, idealidades dignas de quem pensa e se pensa acima dos ‘andaimes’, dos meros instrumentos. Com efeito, encontramos aqui o que Jacques Derrida nos deu a compreender ao abordar a escrita na história do pensamento ocidental pela primeira vez e diagnosticar a economia geral dessa história como logocentrismo. Este consiste no privilégio do pensamento, da alma, da consciência, da teoria, sobre a escrita e não só, sobre a própria estrutura significante da linguagem: é assim que a ‘ideia’ e a ‘razão’ europeias se pretendem ‘universais’, não sujeitas às regras das línguas ‘particulares’. A Filosofia da Linguagem que ensinei durante mais de 25 anos na Faculdade de Letras de Lisboa é uma disciplina que se constituiu apenas no século XX, sobretudo no mundo anglo-saxónico com o seu “linguistic turn”.
3. Onde claramente se dizem, no que às ciências modernas diz respeito, efeitos dessa economia logocêntrica do nosso saber, é na oposição entre o ‘sujeito’, o cientista que conhece, e o ‘objecto’ que lhe é exterior, que faz parte da tal ‘realidade’, oposição essa que é sucedânea dessoutra grega e cristã entre ‘alma’ / ‘corpo’, ‘mundo’[2], e que, ao colocar a relação de conhecimento entre o cientista e a realidade, apaga o laboratório como um instrumento, uma técnica, uma linguagem, um meio de conhecimento ou de comunicação, tudo termos que dizem o que não é digno de figurar na grande aventura da descoberta científica.
4. A definição é uma operação violenta de escrita feita sobre as narrativas e os discursos retóricos enquanto particulares, que abstraiu o termo a definir, arrancando-o aos seus contextos, ou seja que reduziu esses contextos e as suas particularidades, incluindo a ampla morfologia dos próprios verbos das narrativas, e constituiu o texto filosófico enquanto texto que trata de generalidades (e não mais de particulares, acontecimentos ou opiniões), de essências impessoais e intemporais, sem lugar nem circunstância, sem contextos pois, e argumenta sobre elas, nomeadamente indagando de causas e efeitos como razão de ser das coisas.
5. A especulação medieval tendo mostrado os limites do conhecimento alcançado pela definição, o laboratório de física do século XVII acrescentou à teoria científica de definições feita o ‘labor’, o trabalho, a experimentação sobre movimentos detectados por instrumentos de medição. Mas embora acrescentando, o laboratório não deixou de ser filho da definição, já que, como esta, opera uma redução do contexto donde retira o fenómeno a analisar laboratorialmente, retira-o do alcance das narrativas e opiniões para o alçar ao saber gnosiológico intemporal, digamos ‘universal’, se entendermos por ‘universo’ os laboratórios que repitam as operações experimentais, assim como as escolas e bibliografias onde se ensinam essas ciências. Poder-se-á então dizer que o que o laboratório consegue e o torna condição estrutural dessa verdade científica universal é a criação de condições experimentais de determinação que justamente não existem nos contextos habituais da chamada ‘realidade’, de que se ocupam narrativas e opiniões. Pode haver alguma reticência no leitor que tome o termo laboratório à letra dos muros em que os físicos e os químicos se encerram com o seu ‘material’ experimental e pense que as ciências sociais não têm laboratório, são ciências de terreno. Não é preciso todavia procurar muito para encontrar o que é o laboratório destas ciências de terreno, que está naquilo que mais afadiga os seus cientistas como a mais complicada e subtil das suas tarefas: as respectivas metodologias. É que, fora do laboratório não havendo determinação, essa dita ‘realidade’ permanece indeterminada, razão justamente pela qual as ciências sociais precisam de ‘métodos’: para isolar fenómenos sociais, retirá-los da realidade complexa demais: ruínas arcaicas, documentos escritos, arquivos, estatísticas, estão entre as componentes de vários laboratórios dessas ciências.
6. O motivo de laboratório tem uma vantagem equivalente à do paradigma de Kuhn, a de incluir tanto a teoria como a experimentação sem oposição entre elas[3], já que nenhuma existe sem a outra e é de ambas que resulta a redução do contexto do fenómeno recolhido para análise de conhecimento: assim se anula a oposição sujeito / objecto, este último termo podendo guardar o sentido etimológico forte de ‘objecção’ à teoria que o seleccionou. Vantagem ainda de o laboratório permitir marcar a diferença entre ele – como ‘labor’ em vista do conhecimento científico, necessariamente fragmentado em experiências e ‘observações’ variadas – e a cena social complexa donde se retirou o que foi analisado e conhecido, o que leva a colocar, tendo em conta a operação de redução, a necessidade da restituição teórica dos conhecimentos fragmentários adquiridos pelo laboratório ao contexto que foi antes reduzido.
7. Visualizemos sumariamente a redução e restituição em física. O que a teoria coloca é uma equação em que as variáveis correspondem aos resultados da experiência, que permitem verificar a equação e conhecer a sua incógnita. No exemplo mais elementar que se possa imaginar: com a equação v= e/t, medindo o espaço e percorrido por um móvel no tempo t, conhece-se a sua velocidade média v. O que o laboratório acrescentou à geometria, foram instrumentos de medição variados, a começar pela possibilidade nova de a geometria ter em conta o tempo. Com instrumentos de medida de pesos, intensidades de electricidade e outras dimensões, os laboratórios criaram uma variedade de equações físicas que a matemática desconhecia. Ora, o que se mede reduz a ‘substância’ empírica daquilo que é medido, diferentes móveis (ou substâncias) verificando a mesma equação. Usando uma expressão de Galileu na primeira experiência de física moderna de que temos o relato, são apenas “proporções e diferenças” (de espaço, de tempo, de velocidade...) que dizem a cientificidade, como confirma ser esta que é utilizada pelas técnicas de origem laboratorial que ‘restituem’ a física à cena extra-laboratorial ao aplicarem a artefactos inventados as medidas resultantes das equações. É por isso que, embora a teoria da relatividade jogando para velocidades perto da da luz, tenha invalidado as noções de espaço e tempo absolutos de Newton, a física deste continua cientificamente válida para velocidades terrestres, os engenheiros continuam a utilizar as equações clássicas, que resistem laboratorialmente à variação das interpretações teóricas dos cientistas.
 8. Seja uma dada ciência social, a linguística saussuriana[4]. O seu laboratório consiste numa operação sobre frases e sobre palavras, segmentando-as e substituindo os segmentos noutras frases ou palavras, de forma a que as novas frases ou palavras sejam providas de sentido, pertençam à língua. A comutação, constituída por estas duas operações, permite constituir paradigmas quer fonológicos, comutando sobre palavras (Troubetzkoy), quer sintácticos e morfológicos sobre frases (Hjelmslev). A pérola deste laboratório linguístico foi o trabalho de M. Gross, Méthodes en syntaxe, régime des constructions complétives (Hermann, 1975), que, contra a tradição duplamente milenar de analisar as regras sintácticas a partir de alguns exemplos, efectuou uma análise semântica dos 3000 verbos franceses mais frequentes classificados em 19 tabelas que abrem à unificação da sintaxe e da semântica (Belo, 1991). É uma das descobertas científicas mais portentosas do século passado. Ora, o que é que opera a comutação? Ela exige que o material oral[5] que vem ao laboratório tenha sentido na língua em estudo, mas reduz esse sentido, isto é, não o tem em conta na análise, o que implica que reduz o referente a que esse sentido reenvia; reduz igualmente a empiricidade das vozes sobre que opera bem como as intenções dos falantes. Ou seja, os paradigmas linguísticos são constituídos apenas por diferenças linguísticas entre as respectivas unidades, como propusera a revolução do Curso de Linguística Geral de Saussure (1916, 1922): “na língua não há senão diferenças, sem termos positivos”. Isto é, tal como na física, é a ‘substância’ oral que é reduzida. Quanto à restituição, ela é feita, creio, pelo uso dos paradigmas em usos escolares ou, de forma geral, no ensino da língua[6].

O motivo fenomenológico de duplo laço
9. Aproveito este exemplo para apresentar brevemente o motivo fenomenológico de duplo laço do pensador francês Jacques Derrida (recebido do psicólogo americano Gregory Bateson) cuja fecundidade será aqui testada epistemológica e metodologicamente[7]. Seja em que campo for da vida e da actividade, nunca se tem a ver com coisas ‘simples’, mas sempre com algo que é composto de ‘elementos’ enlaçados, a assemblagem desses elementos formando uma dada unidade susceptível de movimento num certo domínio, aquele em que essa assemblagem é reproduzida e circula. Sejam dois breves exemplos, um da ordem da técnica, outro da vida animal. Um automóvel é uma assemblagem de peças que se move por receber energia dum motor (cilindro de explosão) e se orienta numa estrada por via dum aparelho adequado às manobras face ao aleatório do seu trajecto e do tráfego que encontra. Motor e aparelho não existem por si sós, eles foram inventados para jogarem indissociáveis um do outro. Mas são regidos por duas leis inconciliáveis: lei termodinâmica dos gases da explosão da gasolina (cilindro hermeticamente retirado do resto da máquina) que move um êmbolo repetitivamente, cego a tudo o resto), lei do tráfego aleatório, que pede a habilidade aprendida dum piloto para se adequar à circulação. Duas leis indissociáveis e inconciliáveis comandam, não dois laços, mas um duplo laço: após o estádio dissipativo da explosão, o cilindro liga estrictamente essa energia que move o êmbolo em ordem a poder fornecê-la ligada como energia de trabalho ao aparelho do automóvel, susceptível de oscilações, desde o ponto morto até à alta velocidade, para se adequar ao aleatório das situações do tráfego na estrada. Teremos então três estádios entrópicos na energia dum carro: em expansão caótica dissipada no cilindro, ligada ou inibida pelo cilindro e êmbolo e, vinda pela embraiagem, capaz de trabalho  no aparelho. O terceiro estádio, oscilante consoante a sua situação na estrada, é manifestamente instável mas de forma paradoxalmente estável, sempre diferente da pura dissipação (a qual no entanto continua necessária, tanto quanto a ligação forte conseguida pelo êmbolo, para que a oscilação seja possível). Ora bem, este estádio instável, oscilando entre limites, corresponde – nos fenómenos biológicos onde Prigogine teorizou a entropia como estrutura dissipativa – ao motivo de homeostasia: estrutura em equilíbrio produzida pela entropia positiva[8]. Este caso – seja um mamífero carnívoro –  é mais complicado do que este modelo geral ‘inerte’, já que tem mais do que um nível de duplos laços, que lhe dão possibilidades de crescimento na cena onde foi gerado. Além do nível de cada célula, com os seus genes repetitivos e metabolismo dependente do aleatório da alimentação, o nível mais importante é o do laço do sistema alimentar de todas as células (enlaçando os órgãos de digestão, respiração, circulação e jogo hormonal) e o do sistema do movimento (enlaçando os órgãos de percepção, cérebro, membros e seus músculos): o primeiro é bastante repetitivo e obedece ao ciclo dos átomos de carbono bioquímico vindo do CO2 atmosférico por fotossíntese, regulado por via hormonal que o cérebro comanda em função de algum aleatório alimentar; o segundo tem que se adequar às possibilidades de encontrar presas para se alimentar e de se proteger de ser presa para outrem. A lei que rege o motor alimentar é a da auto-reprodução bioquímica, a que rege o aparelho do movimento é a lei da selva na cena ecológica que implica que todos os animais só se auto-reproduzem comendo outros vivos: indissociáveis na unidade de um só laço que alimenta todas as células de ambos os sistemas (mas retirados, genes e hormonas são ‘cegos’ para a cena ecológica, por isso os animais precisam de olhos e ouvidos no sistema do movimento) mas inconciliáveis, já que é questão para cada um de vida ou de morte. Assim como a lei do tráfego determina as anatomias de carros, motas e autocarros, também a lei da selva determina as anatomias das diferentes espécies animais.
10. Voltemos ao exemplo da linguagem humana. Quando falamos, uma frase é um laço de palavras com dadas regras, uma palavra é outro laço de fonemas (letras) com outro tipo de regras. Pode-se dizer que qualquer palavra é duplamente enlaçada ou ligada, sendo que não falamos só por palavras, mas pelo menos por frases. A lógica desta “dupla articulação” é a de que os fonemas (de phônê, voz), da ordem das poucas dezenas, correspondem à capacidade das nossas gargantas reproduzirem sons distinguíveis facilmente pelos ouvidos dos outros mas que, tal como as letras do alfabeto, não têm sentido nem são imagem de nada de exterior à língua: prestam-se assim a formar muitos milhares de palavras, que os nossos cérebros memorizam para poderem construir frases indefinidamente. Como se trata duma realidade social, podemos todos comunicar uns com os outros com as mesmas regras. Ora, a voz feita de fonemas sai-nos pressionadas da garganta para fora (ex-) como um ‘motor’, uma ex-pressão que é indiferente ao que diz nos seus elementos que não têm sentido, já que foram retirados da significação que as palavras constroem (igualmente os nossos dedos fazem im-pressão no teclado do computador). Mas as palavras das frases têm que ser ordenadas pelas regras do ‘aparelho’ da sintaxe (táxis, ‘ordem’ em grego), consoante as conversas peçam respostas a improvisar aleatoriamente. Vantagens deste duplo laço: vale para qualquer frase ou língua quaisque que sejam as regras linguísticas, exibe as duas ligações como um duplo laço, já que nenhum deles subsiste sozinho, o ‘aparelho’ jogando ao rés do contexto a dizer segundo o aleatório da situação e o ‘motor’ retirado dando o movimento à fala ou à escrita. Tal como um automóvel no tráfego, as regras científicas da sua construção estão ao serviço do aleatório deste na estrada. O duplo laço faz-se através das regras que os cientistas estudam em seus laboratórios, que escapam à competência do fenomenólogo: não só é possível ter um modelo epistemologicamente rigoroso como metodologicamente maleável, para uma dada língua ou comparando com qualquer outra língua, como também se tem a explicação do movimento dos fenómenos correspondentes. E ainda: cada laço releva duma dada lei e a unidade do duplo laço resulta das duas leis serem indissociáveis, mas também o seu movimento é possível apenas porque essas duas leis são inconciliáveis, contraditórias. As falas individuais têm que ser corrigidas, se se foge de mais à lei social é-se proscrito, como idiota ou louco: o saber que se vai recebendo da tribo (família, escola, médias) e elaborando como ‘seu’ dar-lhe-á uma reputação valiosa. Enfim, este motivo vale também para a física e química, para os seus compostos de átomos e moléculas, para biologia molecular e neurologia e seus compostos de órgãos e células, para a linguística e para a psicanálise, como para qualquer máquina e, procurarei mostrá-lo aqui, para os fenómenos sociais, mais rebeldes porque tratando-se não de ‘coisas’ mas de estruturas complexas. E presta-se assim para articular as fronteiras das várias ciências, os seus patamares (mineral, vivo, social, linguístico), como se pode ver no manifesto deste blogue (textos de 2008).

A questão da definição de sociedade em geral
11. Como então definir sociedade humana, tendo em conta que se trata duma se­quência da evolução ecológica? Aristóteles evita a separação, ao definir, no início do seu tratado sobre A Politica, a sociedades humana (polis) como formada de várias aldeias em autarcia e como “natural” (segundo a phusis), porque composta de vivos (zôoi) ou animais naturalmente políticos, os únicos animais com discurso (logos), enquanto que as ciências sociais, multiplicando as dimensões das sociedades que abordam sem as saber relacionar entre elas numa sociologia articulada, aparentam uma dificuldade razoável em definir sociedade em geral. Quer se trate dum excelente livro – Metodologia das Ciências Sociais, coordenado por J. Madureira Pinto e A. Santos Silva – de jovens autores hoje consagrados que há cerca de 30 anos se situavam em plena pujança da renovação das disciplinas na segunda metade do século XX, quer se trate de Questões preliminares sobre as Ciências Sociais do iniciador destas em Portugal, A. Sedas Nunes, não se encontra nos autores a necessidade de apoiar as argumentações dos seus textos numa definição de sociedade. A crer dois sociólogos franceses, F. Dubet e D. Martucelli, que sublinham no início do livro Dans quelle société vi­vons-nous? (Seuil, 1998) que “a ideia de sociedade […] não é nunca definida nitidamente” (p. 12), ela só se torna “precisa e operatória quando à ideia de sociedade é associada um adjectivo: ‘moderna’, ‘industrial’, ‘capitalista’ [oposta à] de ‘comunidade’ (sociedades tradicionais, concepções românticas)” (pp. 21-23), deduzir-se-á que a variedade de sociedades de que as ciências sociais se ocupam e sobretudo a multiplicação de ‘dimensões’ das sociedades contemporâneas em que elas se têm especializado terão feito parte do obstáculo a encontrar uma definição comum a todas elas. Este fenómeno de especialização tem também efeitos nas sociedades menos complexas que, no entanto, podem dar jus ao que se chamaria ciências de sociedades, que teriam a ambição de descrever de forma mais ou menos consensual o conjunto da sociedade estudada, e que seriam, segundo o grau de complexidade, a etnologia ou antropologia, a história e a sociologia, esta sem dúvida aquela que resiste mais à utopia de ser uma ciência das sociedades integradas, ainda antes de se ter em conta a globalização. Aquém destes três níveis científicos, as ciências que se praticam tendo como alvo dimensões das sociedades melhor ou pior determinadas mereceriam o nome comum de ciências sociais, a Linguística, a Economia, a Demografia, as várias Sociologias do ensino,do direito, dos médias, da religião, etc.

A lição de Lévi-Strauss: interdito do incesto, logo exogamia
12. Mas não haverá também um outro obstáculo de tipo filosófico nos seus paradigmas, da ordem do que Heidegger chamou ontoteologia? Viremos mais adiante à questão. Ganhámos todavia no parágrafo anterior uma razão que permite justificar a maneira fenomenológica de entrar no problema da definição de sociedade através da ciência que a si mesma se designa como ‘antropologia’, ciência dos humanos, como quem põe o acento do ‘social’ no ‘humano’ sem temer o risco de psicologizações. Com efeito, foi na abordagem das sociedades caracterizadas pelas suas privações – sem história, sem Estado, sem escrita, numa palavra, ‘primitivas’ – que se formulou o que creio ser a teoria do âmago do que chamamos sociedade, duma dimensão hoje recoberta pelas complexas estruturas modernas e por isso mesmo sofrendo uma crise sem precedentes. O que, segundo Lévi-Strauss, essas sociedades inventaram, inventando-se a elas mesmas, foram as lógicas de parentesco que se distinguem das relações biológicas de reprodução da espécie, dando a estas um sentido novo. Com efeito, não houvera interdito do incesto e a coincidência entre reprodução biológica e reprodução social far-se-ia adentro da chamada família consanguínea mas de forma tal que não haveria ‘famílias’, apenas grupos de humanos formando ‘ilhas’ : o paradoxo é que, não devendo haver incesto, cada família tem no seu coração reprodutivo uma mulher de outra família. O laço de aliança que une duas genealogias diversifica-se entre as várias genealogias, criando um sistema de parentesco que coincide com a sociedade, constitui-a como rede de alianças entre as suas várias unidades locais. A questão aqui é a de saber como é que o antropólogo pensou para chegar lá, que laboratório construiu, que redução operou no ‘material’ das tribos que analisou e comparou. A resposta parece ser a seguinte: a patrilinariedade (ou a matrilinearidade em certos casos), a linhagem que privilegia o homem, o pai, no casal em cada grau de reprodução, é uma construção social de genealogias de nomes e alianças que reduz todas as outras reproduções biológicas; se Ego tem 2 pais, 4 avós, 8 bisavós, 2n avós na geração n, a genealogia só retém um em cada grau, n nomes em n graus. Ainda hoje herdamos o nome do pai, do avô paterno... os nomes dos avôs maternos vão sendo eliminados. Esta redução, que tanto é operação das sociedades como da ciência antropológica, permite aos indígenas ter uma regra social para descriminar os incestos interditados e as exogamias permitidas ou porventura obrigatórias. Acrescenta-se assim um nível social de endogamia ao que a evolução biológica criara para as espécies definidas como endogâmicas, isto é com interdito das relações de reprodução entre indivíduos de espécies diferentes, o que a espécie humana obviamente mantém. O que cada tribo faz é instaurar uma dupla fronteira de mesmidade endogâmica, por um lado a de cada linhagem – ultrapassada por uma mulher em cada casamento, em cada aliança exogâmica entre duas linhagens – e por outro a da ordem geral do parentesco que liga as várias linhagens aliadas, ficando excluídos os indígenas de outras tribos, aos quais se fará facilmente guerra, como é manifesto na seguinte citação do antropólogo francês Pierre Clastres que evoca o silêncio do discurso etnológico recente sobre a guerra nas socie­dades primitivas, em contraste com a unanimidade, desde o sec. XVI, dos viajantes, exploradores, missionários, comerciantes, es­tudiosos: “americanos (do Alaska à Terra do Fogo) ou africanos, siberianos das este­pes ou melanesianos das ilhas, nómadas dos desertos australianos ou agri­cultores sedentários das florestas da Nova-Guiné, os povos primitivos são sempre apresentados como apaixonadamente dados à guerra; é o seu carác­ter particularmen­te belicoso que impressiona, sem excepção, os observado­res euro­peus. [...] o que é suficiente para autorizar uma constatação socio­lógica: as sociedades primitivas são sociedades violentas, o seu ser social é um ser-para-a-guerra [9]. A partir do contraste entre “a guerra de todos contra todos” de Hobbes e “as sociedades tribais como sociedades de troca de mulheres, bens e palavras” de Lévi-Strauss, Clastres enuncia o que vale como lei geral das sociedades humanas: trocas adentro das fronteiras e guerra com os estranhos estrangeiros além delas. Tendo em conta que também entre irmãos (e vizinhos) a rivalidade é a regra (§ 16)[10], a rivalidade de quem quer ser considerado o melhor e o mais forte, pode-se dizer que a dupla lei das sociedades humanas é a lei da aliança e a lei da guerra, a troca e a sua razão sendo o antídoto desde sempre contra esta. É a primeira que dá origem às unidades locais de habitação, constituídas por um laço entre os seus indígenas sob a lei que interdita o incesto entre eles e é para evitar que as rivalidades da segunda desfaçam a tribo que há um segundo laço, o da aliança geral de trocas sustentada pelo sistema de parentesco: duplo laço porque dupla lei, nenhuma vai sem a outra, unidade parental e tribo, indissociáveis apesar dos conflitos permanentes.
13. Porquê interditar a sexualidade adentro duma unidade social consanguínea? Porque, invenção precoce da evolução, a sexualidade tem uma lógica contrária à das anatomias animais, que regulam fortemente as dimensões dos diversos órgãos adentro da pele, numa como que ‘racionalidade anatómica’ (que a exuberância das plantas ignora), enquanto que a sexualidade ‘joga à estatística’ sobre o acaso da conjugação entre duas gâmetas, de fêmea e de macho, multiplicando excessivamente o número delas, que se percam a esmagadora maioria para que algumas tenham sucesso. Ora, nas espécies animais vertebradas as épocas de cio limitam no tempo os inconvenientes desse excesso, o que não sucede nas mulheres: aparentemente, o interdito do incesto quotidiano é um controle social desse excesso de energia pulsional que tornaria caótica a organização da vida quotidiana (Georges Bataille), a qual conhece um outro constrangimento de ordem biológica: há que alimentar os membros de cada unidade social todos os dias, o que implica tarefas variadas e uma certa disciplina social. A psicanálise convida aliás a considerar que o recalcamento das energias da sexualidade desloca estas justamente para outras tarefas sociais e culturais, processo a que Freud chamou sublimação e de que Norbert Elias esboçou uma história europeia (que, segundo Elias, a civilização chinesa também conheceu).

Paradigma de usos e costumes
14. Como tematizar este motivo da necessidade duma certa disciplina quotidiana? As tarefas da alimentação implicam antes de mais colheitas e caças de outros vivos, em seguida a sua elaboração culinária e enfim os rituais de comida, processos esses, seja dito de passagem, que alternam as tradicionais ‘natureza’ e ‘cultura’, tornando-as indissociáveis e impossibilitando de as utilizar como fronteiras estanques entre ciências biológicas e sociais, ainda que elas devam reduzir-se reciprocamente em seus laborató­rios. Não é fácil, pois que os mitos ameríndios que Lévi-Strauss analisou têm sobretudo enredos que relevam da culinária, desde o “cru e cozido”, como diz o título do primeiro volume das suas Mythologiques. Ora, as análises procedem pelo relevar de códigos mitológicos e seus cruzamentos, tendo como fio condutor que se trata igualmente de códigos do que o autor chamou uma lógica das qualidades sensíveis, uma lógica que guia o “pensamento selvagem” nos seus usos quotidianos, os tais que reclamam uma certa disciplina contra o caos duma sexualidade sem lei. E o que é um uso? é uma sequência de gestos de um ou mais indígenas ou useiros, com certos materiais em usos técnicos, certos rituais em costumes, uma sequência difícil de inventar e mais ou menos fácil de aprender, à qual sequência os humanos que a usam também pertencem. É esta pertença que é rompida pelo ‘sujeito’ filosófico, mas também pela ‘acção’ (Touraine), pela ‘prática’ (Althusser), pelo ‘habitus’ (Bourdieu), tudo maneiras de justapor os humanos ao ‘social’, de os colocar em oposição, maneiras de ignorar o motivo de aprendizagem pela qual os usos sociais fabricam o indígena como humano tribal, o que se pode chamar a operação elementar de socialização.
15. Estes usos repetem-se nas várias unidades locais, são adequados à situação ecológica da tribo que se encontra sujeita à lei da selva tal como os outros mamíferos e aves, devendo caçar alimentos e defenderem-se de serem caçados. É a omnipresença desta lei que torna a situação biológica (ou ecológica) dominante em toda a vida social. A importância desses usos é decisiva assim, e não há sociedade que não a realce ao proceder sistematicamente ao ensino progressivo desses usos às novas gerações como condição de reprodução da sociedade como tal além da morte das gerações. Pode-se mesmo pensar que os desenvolvimentos da linguagem acompanharam os dos usos inventados, fornecendo-lhes as ‘receitas’ que ajudam fortemente à aprendizagem. Ao conjunto dessas receitas e usos – unidade da teoria e da prática desde sempre – convém de forma geral o motivo de paradigma, o que Kuhn tematizou para os laboratórios científicos sendo um caso particular duma lei geral das sociedades humanas. Onde quer que haja unidades locais de habitação, familiares ou de actividades especializadas, elas exigem um conjunto de regras a respeito dos usos da sua reprodução diária, sazonal ou anual, a que todos têm que ser iniciados pois que a todos dizem respeito, embora as idades, o género e a ‘condição’ (senhor e servo) impliquem diferenças entre os indígenas, já que a participação de cada um como ‘useiro’ competente seja condição de beneficiar do conjunto, mormente como alimentação e segurança. O critério da morte das gerações como comandando a aprendizagem dos que nascem e crescem explicita a necessidade de rituais evocativos de narrativas míticas ancestrais perdidas no tempo, de antepassados de quem os nossos pais e avós receberam os usos que aprendemos para repetir, a repetição estrita desses mitos vindo ritualizar acontecimentos sociais fortes em que toda a tribo, apesar das suas rivalidades internas, se reconhece como uma sociedade diferente e rival das vizinhas.
16. Os que nascem aprendem os usos que já existem socialmente antes deles, recebem-nos passivamente de fora, e ter aprendido manifesta-se não apenas na maneira activa como começam a usar o que não sabiam, mas também na anulação desta diferença entre passivo e activo que é a habilidade espontânea dos useiros: manifesta-se assim que o que do fora social lhe veio se tornou coisa sua, a partir da qual se afirma diante dos outros como participante do paradigma que os une. Esta afirmação é ratificada socialmente com louvor ou castigo consoante, o que leva a que quem de outrem aprendeu queira ser como os outros mais velhos e ainda melhor do que os da sua geração: estará aí, na aprendizagem como desejo de ser indígena adulto apreciado pelos outros, a raiz da rivalidade entre irmãos e depois entre vizinhos, semente da lei da guerra que se tece com a da aliança que preside às trocas. E será justamente a guerra em relação a tribos estranhas quem anula provisoriamente a dimensão tribal interna dessa lei, obrigando à solidariedade do conjunto e manifestando o laço social que enlaça as várias unidades locais. São estas os elementos constitutivos das sociedades, não os indivíduos: estes tornam-se indígenas sociais ao serem integrados no paradigma como laço da unidade local por via da aprendizagem dos seus usos e costumes[11].

Para definir sociedade
17. Podemos agora retomar a questão da definição de sociedade a partir destas considerações genéricas sobre sociedades relativamente simples nas suas estruturas. O que é que há que reduzir do conjunto social, das suas variações por assim dizer acidentais, para nos atermos a uma definição válida? Já encontrámos o motivo de sistema de parentesco composto de várias genealogias que se aliam trocando mulheres como construção social além da esfera da reprodução biológica. Esse motivo reduz a variação empírica das gerações através da qual o sistema foi restituído, isto é, encontra um motivo que transcende a sucessão das populações e a diferença que há entre as gerações, já que, passados 50 anos por exemplo, se trata empiricamente de outra população. Ou seja, a população (actual ou antepassada) não é um elemento da definição de sociedade[12]. Creio que está aqui a raiz dum obstáculo de ordem filosófica nas epistemologias do social. Uma população é uma multidão que se observa, uma estatística que se conta, mas uma sociedade não é uma população que.... O que define a sociedade – território ecológico habitado – é a maneira como se organiza a sua população em unidades locais e essa organização é transmitida por aprendizagem de geração em geração. O que propus chamar paradigma dos usos das unidades locais, que mantêm uma mesmidade relativa ao longo das gerações e que implica os indígenas como componentes dos usos, será o que definirá a sociedade: ela habita uma dada terra ecológica que a alimenta, repartindo-se em unidades locais com seus paradigmas de usos e costumes e defendendo-se de estranhos: cada unidade local enlaça os seus useiros e por sua vez é enlaçada com as outras pela tribo por via do sistema de parentesco, duplo laço social. O motivo de ‘humanos’ (indígenas, useiros) é-lhe essencial, mas não é a partir dele que sociedade se define: nem ‘população’ nem ‘indivíduos’ são o sujeito da definição. Porque sendo a aprendizagem o seu momento decisivo, o da sua reprodução além da morte dos indígenas, é a sociedade em seus paradigmas que institui os useiros como a sua população: assim como física, química e linguística é das diferenças (entre medidas e entre sons, respectivamente) que se ocupam, também nas ciências das sociedades são as diferenças entre paradigmas que se repetem mais ou menos nos usos de unidades sociais vizinhas, empiricamente distintas: aquilo que em indivíduos (populações) empiricamente diferentes se repete como o mesmo, repetições cíclicas (diárias, em estações, anuais...). O paradigma dos usos enlaça os indígenas de cada unidade social, o conjunto de todas é enlaçado por um laço político: não é na ‘substância’ dos usos mas nas suas diferenças que consiste a sociedade, no que cada um aprende deles à sua maneira, a maneira singular, individual, como as diferenças paradigmáticas se reproduzem, na aprendizagem e na sua continuação hábil, incessante aprender. Como se depreende facilmente da Linguística, ciência social da língua, em que é esta que é aprendida pelos falantes, só existindo aliás nas falas deles[13], mas em que eles são reduzidos como condição da restituição das estruturas da língua (os paradigmas linguísticos, aonde Kuhn foi buscar o seu motivo epistemológico). A noção corrente das línguas como ‘convencionais’ enferma do pressuposto de que são os humanos que, quais demiurgos, criam a língua, o qual pressuposto releva do que Heidegger chamou ontoteologia, o ‘homem’ ou o ‘sujeito’ tendo ocupado o lugar do ‘Criador’. Basta reparar como cada humano usa a sua língua espontaneamente, até para pensar sozinho, com uma quantidade de regras fonológicas, morfológicas, sintácticas e semânticas que ele ignora, para se perceber que estas nunca foram ‘imitadas’, como se julga, mas foram instauradas nos falantes, passivos tornados activos sem que se possa separar o social da língua e o individual da fala e do pensamento singulares. Assim se faz plena justiça à pretensão dos sociólogos de que a sua ciência se ocupa da socialização dos indivíduos. Trata-se aqui de levar essa pretensão a uma maior exactidão, de procurar esclarecer o que inadvertidamente resta nela de ‘ideológico europeu’, de ‘ontoteológico’. Para saber se qualquer discurso de ciências sociais releva deste pressuposto, basta indagar do lugar que nele tem o motivo da aprendizagem, quer da língua, quer dos restantes usos. Tão pouco nenhum dos grandes filósofos, até ao próprio Heidegger pelo menos, se ocupou dele, que é de serem filhas da filosofia que as ciências padecem neste ponto crucial. E os acontecimentos, que por definição escapam à repetição estrita? Esta objecção obriga a indagar o que é que em ciência do social é um acontecimento: só merece ser tratado cientificamente aquele que alterar, parcialmente, é bem de ver, um paradigma estabelecido de repetições cíclicas, o que Kuhn chamou ‘revolução’.
18. Ter-se-á percebido que o fenomenólogo não intervém no laboratório metodológico dos cientistas sociais, que é a parte da experimentação especializada; mas acrescente-se que o que ficou releva da parte social da fenomenologia enquanto filosofia com ciências, que teve que indagar do ‘social’ dos humanos como do biológico, da linguagem, da sexualidade, dimensões que a filosofia europeia reduziu com Descartes e Kant (e que Hegel e Marx recuperaram aliás, ficando essas tentativas como ‘doutrinas’ desses pensadores). O que se pretende é questionar a parte teórica do paradigma das ciências sociais, aí aonde se diagnosticou um obstáculo epistemológico que as emperrará. Por exemplo, pôr a questão de saber quais são os usos das tribos que colhem plantas, caçam, pescam, que estão portanto envoltas na lei da selva, de que a lei da guerra ainda não se distingue claramente[14], como acontecerá após a invenção da agricultura e da criação de gado. Ora bem, a resposta é a de que os seus usos são sobretudo – além das festas, ornamentos, rituais de invocação mitológica dos antepassados – os que relevam da condição mamífera dos seus indígenas, busca do que comer e proteger-se de quem os queira comer ou agredir, são usos que relevam da biologia (sem oposição todavia entre natureza e cultura, pelo menos desde a invenção do fogo): a primeira função das sociedades humanas é assegurar melhor para todos essas duas condições básicas dos mamíferos, alimentação e segurança. Sendo pois os usos tribais antes de mais resposta ecológica à lei da selva, à constituição biológica dos humanos, e sendo as invenções que vierem com a história acrescentos a essa dimensão tendendo a subordiná-la, como diremos, poder-se-á da definição dada inferir uma espécie de axioma científico social que privilegiará, se dizer se pode porque contra todos os ‘privilégios’, a salvaguarda dos usos que têm a ver com a alimentação e a defesa contra as agressões físicas: esses usos deverão ser garantidos a todos e a cada um dos indígenas em todas e cada uma das unidades sociais a esses usos atinentes. Dever-se-á encontrar-se uma maneira de as ciências das sociedades poderem zelar pela observação deste axioma, contra a fome e a insegurança dos mais vulneráveis. As ciências sociais podem ter um tal papel? Sim, nem se vê que outro papel possam ter, tal como a biologia dos humanos, isto é, a medicina, é ciência para os curar.

A invenção da agricultura: organigrama das sociedades agrícolas enquanto regiões autárcitas
19. Partindo desta definição, a questão agora será a de discernir as alterações dos sistemas de usos que vão se estabilizar na história do Ocidente, primeiro como sociedades agrícolas, reinos, impérios, em seguida como civilizações cosmopolitas, com um retrocesso ‘medieval’ entre o cosmopolitismo da Antiguidade e o europeu. Uma maneira simples de abordar o capítulo referente às sociedades de agricultura predominante é procurar desenhar a lógica das sociedades indo-europeias cuja mitologia trifuncional foi objecto de análise por Georges Dumézil, antes de vir à sua maneira de desembocar numa civilização cosmopolita em torno do Mediterrâneo. Esses mitos exibem as três funções sociais que estruturam essas sociedades, a que correspondem três tipos de usos exclusivos uns dos outros: uma função sacerdotal e/ou soberana, uma função guerreira e política e uma função produtiva, económica, que supõe tanto agricultores e pastores como artesãos e comerciantes. Esta disjunção só foi possível devido à invenção da agricultura e da criação de gado, que introduziu o trabalho como tempo em diferido, entre plantação e colheita, entre parto de crias e sua maturidade nos rebanhos. Em consequência essas sociedades subtraíram-se à lei da selva, ganharam sobre ela uma certa mestria que lhes permitiu produzir alimentação em excesso em relação às necessidades de agricultores e pastores, e portanto libertar uma (pequena) parte da população para outros usos produtivos de tipo artesanal, mas também para as duas outras funções, sagrada e de guerra, cuja especialização se tornou necessária a partir dum certo desenvolvimento da ‘riqueza’ produzida.
20. Até à industrialização, a forma base de riqueza consistiu na acumulação dos produtos da terra, o que convida à guerra para além dos saques e rapinas, para ganhar terras e escravos, impor tributos, a casta guerreira de senhores dessas terras a si se justificando em reciprocidade com as outras vizinhas, mais ou menos poderosas, de quem devem defender-se. Reinos e impérios têm aí a sua lógica elementar, a da lei da guerra ao nível político: somos guerreiros para defender o ‘nosso’ povo de outros guerreiros que ‘nos’ atacam. Quanto à função sacerdotal em torno de templos religiosos, ela parece justificar-se pela incerteza dos humanos sobre a fecundidade das plantações e dos rebanhos, fecundidade essa que, com a das mulheres das casas (e as vitórias nas guerras), os humanos não controlam e é motivo de grande parte dos mitos da função produtiva; também os cuidados de regulação da justiça cabe a essa função soberana. A produção artesanal corresponde à primeira forma de divisão do trabalho económico, com especialização em certas artes e produção deliberadamente excedentária, destinada a outras casas, sejam as dos guerreiros e dos sacerdotes, sejam às trocas com outras casas de produtores; estão assim na base da formação de cidades, aonde se juntam as casas artesanais e comerciais em torno de templos e de palácios reais, formando regiões com os arredores de aldeias de actividade agrícola que concorrem para a alimentação dos citadinos (Lisboa e os saloios). Há que acrescentar um outro tipo de actividade especializada, a da invenção da escrita e das contas, que virá a introduzir uma instituição diferente ligada à sua aprendizagem, a escola. A divisão dos indígenas em funções e especializações diferentes quebra a unidade da ordem do parentesco e do laço político tribal, levando à transformação das unidades locais de habitação em casas, que se caracterizam pela unidade do parentesco e da actividade económica, as alianças fazendo-se doravante entre casas da mesma casta, as que dominam zelando pelas respectivas genealogias de antepassados e suas divindades de proximidade. Todas estas sociedades saídas da invenção da agricultura são caracterizadas por a forma de energia das suas actividades ser essencialmente de ordem biológica, quer bioquímica das plantas e alimentações, quer muscular humano e animal no que diz respeito a trabalho: a fecundidade da vida é o seu âmago.
21. Sendo óbvio que não se trata aqui senão de delinear estruturas, a investigação histórica dando conta das suas variações geográficas e temporais, das oscilações conjunturais, é possível descrever o jogo dos duplos laços sociais no organigrama das sociedades de casas. Em cada casa, o respectivo paradigma inscreve-se enlaçando cada humano pelos usos que aprendeu e exerce com os outros, com diferenças relativas a género e idade, pelo menos. Este duplo laço, de todos no paradigma da casa e de cada um no seu ser no mundo, enlaça em seguida as casas em alianças de parentesco segundo endogamias de castas, as casas das aldeias trocando suas filhas, e as das cidades: temos assim duplos laços políticos de aldeia e de vila; mas na medida em que as trocas desenvolvam algum mercado, este joga como um (outro) laço económico entre as casas que trocam e até com as das aldeias, se forem estas que os alimentam. Por sua vez, as castas que comandam e governam, além dos laços entre si por alianças, enlaçam-se com o conjunto das casas da região num duplo laço político e religioso que se estende a outras regiões, de cujos conjuntos formam reinos, de vários reinos conquistados impérios. O termo ‘região’ introduzido no parágrafo anterior tem em conta que as deslocações eram muito limitadas e que a esmagadora maioria dos indígenas não saía dos seus limites geográficos, excepto para a guerra fora e as caravanas de comerciantes em zonas mais desenvolvidas. O que é típico é que as casas agrícolas se autosustentem em grande parte, a sua ligação interna, o seu paradigma, sendo uma forma de autarcia, incluindo as casas senhoriais a que pertencem seus escravos ou servos, enquanto que as casas artesanais e suas trocas inauguram formas de alguma heterarcia, a da divisão do trabalho. Mas a região, conjunto de casas duplamente ligadas em proximidade de deslocações, obedece à mesma lógica de autarcia, e é assim que Aristóteles definiu “a comunidade formada de várias aldeias como cidade (polis) perfeita (ou acabada, teleios) que atingiu o nível de autarcia por assim dizer completo; tendo-se constituído para permitir viver, ela permite, desde que exista, conduzir uma vida feliz. É por isso que qualquer cidade é natural” (Politica I, 2, 1252b28-31): esta última caracterização inclui portanto tudo o que diz respeito à dimensão biológica – o ‘natural’ é o que nasce, a phusis o que cresce – e às formas de energia respectivas, a dos animais e dos humanos que trabalham e a dos combates guerreiros (antes das armas de fogo). E encontra-se aqui uma outra característica de ultrapassagem parcial do biológico pelas castas senhoris em que aos senhores repugna qualquer trabalho de tipo muscular, a que se chamará na tradição europeia ‘trabalhos servis’: a dominação que exercem exclui-os de serem fornecedores de energia em sociedades em que esta é, de forma praticamente exclusiva, de tipo biológico, tanto na aristocracia antiga como europeia. Os filósofos não costumam salientá-lo, mas toda a filosofia até Hegel foi escrita neste tipo de sociedades, de dominância energética biológica[15] e em que os pensadores, pertencentes às castas que não trabalham, puderam permanecer na ‘filosofia perene’ dos sujeitos sem corpo nem mundo que lhes vinha das almas platónico-cristãs. Mas também os cientistas ainda hoje padecem de não saberem que ocupam essa posição filosófica e é provavelmente a razão pela qual apenas com Marx tenha sido pensado o social em sua autonomia própria, não ontoteológica, que só após ele se tenham manifestado e desenvolvido ciências de sociedades.

Cosmopolitismo da Antiguidade greco-romana e Cristandade medieval
22. Em sociedades de dominância agrícola, o desenvolvimento dos usos técnicos, importados pelos Gregos, acrescentados pelos Romanos que eram bons engenheiros, levou ao desenvolvimento das cidades, o império dos Césares, a única forma extensa possível que resultou das guerras de conquista, tendo sido garantido pelo exército e por alguma administração. As migrações e mistura de gentes variadas nas cidades gerou um cosmopolitismo com atenuação da incidência dos mitos religiosos (guardados pelos que trabalham com plantas e gados, os futuros ‘pagãos’), coberta nas cidades gregas pela multiplicação de manuscritos que discutem ética e sabedoria a partir das tragédias representadas, assim como pela instituição de escolas para jovens. O célebre “só sei que nada sei” de Sócrates ilustra bem a desconsideração dos saberes tradicionais aprendidos e a inovação crítica que as escolas buscam. Também no império romano se propagarão diversas escolas espirituais e filosóficas de importação asiática. Ora, a crise cosmopolita das tradições religiosas, de que é eco no século III a sucessão alucinante de assassinatos de imperadores por generais que os substituem até serem assassinados por seu turno, levará às reformas administrativas de Diocleciano e Constantino e, a partir deste ao longo do século IV, à substituição dos ritos civis tradicionais por uma nova religião, surgida da transformação acelerada dum movimento espiritual de origem judaica que fora intelectualmente reelaborado pela filosofia platónica (Orígenes, início do século III).
23. Esta substituição é compreensível se se perceber que o laço politico imperial, que se manifestara com ligação ao laço religioso no culto dos imperadores, não conseguia sobreviver só com os exércitos, sem recorrer à dimensão espiritual que se forjara nas escolas cosmopolitas, as igrejas cristãs exibindo uma concentração monoteísta das divindades e uma acentuação ética forte, duas facetas que seduziram as elites de então. Mas se já o império romano, forma expansionista e globalista da ordem da conquista levada até aos limites possíveis do mundo mediterrânico, é na história ocidental a excepção do cosmopolitismo e a sua extenuação[16], esta introdução que transformou o cristianismo de igreja espiritual (buscando converter adultos e baptizá-los) na religião do império (de tendência holística, com o baptismo dos bebés a triunfar) veio a revelar-se outra excepção: as administrações imperiais não desaparecem totalmente, são frequentemente supridas por formas civis cristãs, com o papado a recuperar ritos e ornamentos litúrgicos de Roma e os bispos a tornarem-se, sempre que foi necessário, os garantes da administração civil das ‘regiões’ a que as suas dioceses correspondem. Mas tornado religião de toda a população, o cristianismo também herdou o expansionismo globalista do império e expandiu-se pelos povos ditos ‘bárbaros’, tendo criado algo de inédito (parcialmente repetido pouco depois pela civilização muçulmana): um conjunto de sociedades – com seus paradigmas de usos e línguas tais que não se entendem entre estrangeiros – com laços políticos de tipo feudal e episcopal, em que o laço eclesiástico alcança essas sociedades todas ligando-as a Roma, no que se chama a Cristandade medieval, cujos limites a leste são os dos povos eslavos que conhecem um fenómeno eventualmente equivalente a partir das igrejas cristãs ortodoxas de língua grega.
24. É preciso dizer que as sinagogas judias, desde os séculos V ou VI a.C, e as igrejas cristãs primitivas, ambas espalhadas pelo mundo grego e romano, são, de uma outra maneira porque segundo uma outra tradição de escrita, equiparáveis às escolas filosóficas gregas, com a diferença de nestas ter jogado igualmente a dimensão intelectual além da espiritual (é a elas que se deve a invenção da definição, por onde começámos). Equiparáveis no sentido em que a leitura de textos e a reflexão sobre ética e sabedoria tem nelas um papel essencial, juntamente com os outros ritos litúrgicos, e foi o que permitiu a confluência com o platonismo em Orígenes (185-253) que fabricou a teologia cristã em conceitos filosóficos. Ora bem, esta confluência voltou a dar origem a instituições medievais igualmente excepcionais na história das sociedades ocidentais: as universidades são simultaneamente escolares e eclesiásticas, comunidades de mestres e discípulos que ensinam e discutem textos vindos da Antiguidade mas que são também clérigos susceptíveis de suspeita doutrinal da parte dos bispos da diocese. Só no século XIX haverá reformas das universidades que as desligam completamente deste laço eclesiástico, mas as discussões científicas e filosóficas, Giordano Bruno e Galileu, indicam como elas tinham a ver com os grandes laços sociais, políticos e religiosos, que lentamente se vão desligando, mas necessitando de revoluções e contra-revoluções.

Organigrama das sociedades modernas: das autarcias à heterarcia
25. Sugeri no texto citado, Da Natureza à Técnica, como entre 1450 e 1520 houve uma viragem, cujas inovações – impressão de livros que tornou possível o protestantismo, descoberta marítima do globo, renascimento humanista (por exemplo, L. da Vinci, 1452-1519) e nova relação gráfica entre olhos e mãos (pintura, arquitectura, cartas náuticas, desenhos de plantas, anatomias, engrenagens) – permitem perceber que só depois disso o nome de Europa começou a ser vulgarizado (Erasmo, Camões, Tasso), como se só então se desse o ‘nascimento’ da Europa, já com o laço da cristandade dividido em conflito doutrinal (e de armas de fogo) que abriu o grande espaço céptico que as descobertas de mares, estrelas, povos, usos e costumes tão diferentes e desconhecidos dos Antigos, reforçaram como dúvida em relação à autoridade dos seus textos nas disputas escolares, espaço céptico esse em que Copérnico, Descartes, Galileu e tantos outros vieram colocar novas questões e buscar-lhes respostas inéditas. Ao filósofo espanhol Osvaldo Markett, que disse que as universidades são a mais bela invenção da Europa, há que contrapor que é a Europa que é a invenção das universidades medievais, mas também das comunas de ‘burgueses’ (as cidades!) que necessitaram delas para os novos jogos entre olhos e mãos que “clero, nobreza e povo” ignoravam: os calvinistas de Max Weber, burgueses cristãos sem laço com Roma, e a filosofia e outras artes universitárias são parte decisiva do segredo da Europa[17] que lhe permitiu aparecer no século XIX no panorama global do planeta como uma modernidade inédita. Trata-se de delinear os seus grandes traços, o seu organigrama.
26. A grande diferença é de ordem energética, contraposta às formas biológicas das sociedades de dominância agrícola e pastoril: a partir da invenção da máquina a vapor, a energia será doravante produzida industrialmente, com dois grandes saltos posteriores, o da electrificação social e o da electrónica. Como se disse para o automóvel (§ 9), esta invenção consistiu em reproduzir de forma muito simplificada os duplos laços que permitiam aos animais serem auto-móveis: criação dum ‘motor’ retirado estritamente do resto da máquina, do seu ‘aparelho’ (estes diversos na produção fabril, comboio, navio a ‘vapor’), um duplo laço que permite a autonomia de movimentos a partir da energia fornecida pelos cilindros do motor. Todo o processo da modernidade é progressivo na geografia regional e nacional, começando na Grã-Bretanha e exportando-se a outras sociedades já capazes do esforço industrial: a paisagem das regiões foi progressivamente sendo transformada pela exigência de novos edifícios de grande dimensão que a invenção dos comboios (transporte de carvão, matérias primas e mercadorias) permitiu construir nos subúrbios das cidades, juntamente com as habitações mais ou menos miseráveis do proletariado que foi chegando do êxodo rural. Foi assim que se inverteu o eixo que prevaleceu desde a invenção da agricultura entre os campos, lugar da riqueza aristocrática, e as cidades, onde a divisão do trabalho, o comércio e a escrita de pensamento e investigação: foi assim que a aristocracia sem mãos teve que ceder o poder ao capital burguês com máquinas que unificou administrativa e politicamente as regiões sob a égide duma capital e duma língua de circulação nacional, marginalizados os dialectos regionais. Que a fecundidade tenha cedido à produtividade e a uma nova abundância explica que a religião tenha deixado de ter a função de integração holística que passou para a escola obrigatória.
27. A consequência mais óbvia deste processo foi o corte operado nas casas de antanho, que dissemos serem a unidade social do parentesco e da actividade económica (§ 18) e a respectiva autarcia, mormente nas casas agrícolas de auto-subsistência: a modernidade dividiu a dupla função dessas casas em duas novas redes de unidades sociais interdependentes, as instituições especializadas em funções de trabalho, com locais e horários limitados, e as famílias que sobrevivem com as funções de parentesco predominantemente relativas à dimensão biológica dos humanos, incluindo o descanso e o divertimento, tendencialmente limitadas aos casais e seus filhos, para as quais se construíram prédios de andares alugáveis nas cidades. Esta duplicidade de unidades sociais só foi viável devido a dois laços sociais da Antiguidade cosmopolita que sobreviveram de forma mais ou menos marginal: por um lado, a escola da leitura, escrita e contas recebe as crianças das famílias para as entregar mais tarde às instituições de trabalho, supre a aprendizagem familiar no que diz respeito às tarefas civis que foram abertas, recapitulando os conhecimentos que ao longo da história foram tornando possível a modernidade; por outro o mercado implica que as instituições que produzem retribuam às famílias em salário a energia dispendida no horário de trabalho, esse dinheiro permitindo o poder de compra das coisas produzidas das famílias para a sua subsistência. A escola, prolongada nos livros e nos outros médias[18] de massa, cria um laço cognitivo entre os indígenas (e mediante tradução além da língua própria) e deles com os antepassados como fazedores de cultura literária, científica e de pensamento. Obrigatória, a escola tende a substituir as religiões holísticas que estabeleciam uma relação sagrada com todos os antepassados de quem eram recebidas; a relação que a escola e os médias estabelecem é de ordem cultural e histórica, passível de escolhas e rejeições. À fecundidade dos campos e dos rebanhos que as religiões buscavam na transcendência, sucede agora a abertura de janelas para a curiosidade humana de conhecer e compreender além dos contextos quotidianos: há assim uma modificação da relação de tradição aos antepassados de quem se recebem os usos, do sagrado de todos os antepassados à cultura dos antepassados cujos nomes constam da história que trouxe, dos gregos, romanos e hebreus, à modernidade, passível de escolha e discussão critica[19]. O mercado, por sua vez, faz uma charneira vital entre as instituições de trabalho e as famílias, de forma tal que o desemprego consiste em exclusão social, acabada quase sempre a autarcia de antanho que mantinha hortas e criação para suprir dificuldades de subsistência.
 28. Este organigrama genérico implica que os indígenas doravante não ficam ligados apenas a um paradigma, o da casa em que nasceram ou da que vierem a constituir, mas desde muito pequenos se liguem à escola além da família e mais tarde à instituição em que trabalharão: esta pluralidade dos paradigmas que jogam na sua ligação ao social é o que caracteriza o indivíduo moderno, o que torna possível a sua liberdade. Mas é ao mesmo tempo uma situação de mútua interdependência resultante da divisão do trabalho – heterarcia é o poder dos outros sobre nós, em vez do meu, da aut(o)arcia – entre instituições diversas, das famílias também em relação a elas, com o inevitável aumento de rivalidades, tornadas aliás norma do que se chama ‘concorrência’ entre fabricantes dos mesmos produtos, entre números de capitais quer de instituições, quer de nações diversas. O que implica que às duas instituições inter-redes, escola com médias e mercado, se tenha acrescentado outra de regulação política geral, separando as casas reais e seus haveres das ‘coisas públicas’ do Estado, o qual ganhou uma institucionalidade bastante complexa, multiplicando unidades locais de actos oficiais diversos e de trabalho administrativas (repartições). Mas o que veio tornar mais complicadas as tentativas de análises foi a interdependência das instituições produtivas e comerciais num todo global a que calha bem o nome que Heidegger lhe atribuiu há mais de 60 anos, o Gestell, digamos o sistema técnico financeiro dos usos enquanto rede de empregos.
29. A questão que põem estes dois organigramas, o da autarcia das regiões das sociedades de casas e o da heterarcia contemporânea, é a de saber se os vários duplos laços do primeiro podem servir de fio inquiridor da viragem europeia de vários séculos entre ambas as civilizações. O mínimo que se pode dizer é que não é evidente.

A escrita do conhecimento e do pensamento
30. Não conhecendo a história rural e económica da Europa, permito-me dizer que as aldeias e campos das regiões da sociedades de casas terão oscilado conjunturalmente segundo as transformações políticas e religiosas até ao êxodo rural do século XIX, as inovações a ter em conta dizendo sobretudo respeito a movimentos de cidades. Nelas sábios escrevem e lêem textos uns dos outros, textos científicos e filosóficos do saber que se publicaram, além de cartas que escrevem e de conversas e discussões; essa textualidade tornada possível pela imprensa enlaça-os enquanto gente que, usando olhos e mãos, ganha saber colectivo, o escrever e ler linhas alfabéticas sendo motor do laço geral que gera a ‘comunidade dos sábios’, primeiro em latim, depois em línguas vernáculas. Ora, estes laços textuais fazem-se entre as casas dos escritores / leitores e as escolas que frequentaram e lhes deram competência de ler e escrever, de inovar além do que aprenderam, trate-se quer de experimentações com técnicas laboratoriais, quer de reflexões filosóficas metafísicas e sobre política, direito e religião, que irão construindo pouco a pouco paradigmas que desaguarão, após o Iluminismo da Enciclopédia e de Kant, na reforma das universidades do século XIX e dos liceus e institutos técnicos, e na exigência de escola primária obrigatória. Não será fácil para o historiador analisar estes laços nos textos dos seus arquivos (as semióticas não terão cumprido as suas promessas dos anos 1960-70), mas as possibilidades que eles abrem, manifestadas nas revoluções politicas inglesa, francesa, americana e latino americanas e na exigência de escolarização que elas veiculam, mostram bem como a atenção dos historiadores que querem entender a singularidade da Europa tem que se focar também nesta cena de inscrição textual revolucionada a partir de Gutenberg. Que a exigência escolar se tenha desenvolvido sempre com a industrialização é bem a confirmação da importância desta história da escrita pensante, que não tem que ser escondida debaixo de pretensas ‘histórias das mentalidades’, essas sim, realmente inacessíveis[20]. Será possível um trabalho de historiador, das ideias, como se diz, que estabeleça a relação entre as da contemporaneidade e a sua história? Sobre o qual se poderia continuar em digressão por textos de instituições modernas que relevam de outras tradições civilizacionais, chinesas, indianas, muçulmanas, e tentar perceber até que ponto é que os motivos tradicionais destas continuam, ou não, e se os ocidentais não directamente técnicos têm algum cabimento nesses textos, são ou não necessários à modernidade dessas sociedades que tanto importaram ao Ocidente, isto é, à Europa (de que as Américas são herdeiras também). Se suceder que eles os introduzem na semântica das suas línguas, como as nossas têm termos gregos e as línguas germânicas também latinismos, poder-se-á compreender melhor o que está aqui em jogo.
31. Enquanto que a história da descoberta dos oceanos pelos Europeus, da globalização dos mares e das guerras e comércios, da escravatura de africanos e da redução dos indígenas americanos, é conhecida como parte decisiva da acumulação de capital que tornou possível a industrialização, é menos frequente dar-se atenção à nova relação entre os olhos e as mãos que o Renascimento instaurou, uma nova inscrição que até então terá sido interdita pela dominância das castas guerreira e clerical, só esta tendo acesso às letras na Cristandade medieval, partilhando o privilégio da nobreza de não usar as mãos (§ 19). Conta Plutarco (46-125 da nossa era) que Arquimedes “não se dignou nunca deixar por escrito nenhuma obra sobre a maneira de construir [as máquinas]” porque achava “que toda essa ciência [de engenheiro] era vil, baixa e mercenária”[21]. Ora, o que pintores, arquitectos, desenhadores, cartógrafos, engenheiros como Da Vinci, fazem vai ter como consequência – nomeadamente visível em Galileu e em Newton, de que se sabe que ambos tinham jeito de mãos e faziam os artefactos de que necessitavam as suas experimentações – que gente de conhecimento deite mãos à obra sempre que necessário. Que nobres tenha havido a partilhar esta aventura europeia do saber, é a excepção que confirma a regra: são artesãos e intelectuais burgueses que a conduziram, como diz o laço da inscrição que passa nas suas casas de escritores, leitores, inventores e descobridores, onde começaram por improvisar seus laboratórios. Quanto às engrenagens mecânicas, é sabido que as que foram precisas para as máquinas a vapor já haviam sido inventadas durante o Renascimento, já aparecem na Enciclopédia de Diderot e d’Alembert. Quando D. Landes, o historiador da técnica europeia, pretende que a invenção de J. Watt foi ‘empírica’ e não ‘científica’, já que a sua teoria física, a termodinâmica, só foi elaborada um século mais tarde, ele estabelece uma dicotomia entre ciência e empirismo que parece ignorar que Watt trabalhava em mecanismos para laboratórios de física, que era portanto alguém do mundo da ciência do seu tempo. Quanto à história da electricidade, a dúvida já não se põe, embora o inventor do motor eléctrico, o que chamavam dínamo, o marceneiro belga Gramme, possa servir de exemplo a Landes: é que foram precisos experimentadores como Volt e a pilha que inventou para se obter a corrente eléctrica, a partir da qual a teoria da electricidade pôde ser desenvolvida experimentalmente (a electricidade não existia, ao contrário do carvão e do petróleo). Justamente, estes engenhosos antepassados dos nossos engenheiros também eram enlaçados pelos laços de textos dos saberes, que as separações e oposições entre teoria e prática, ciência teórica e experimentação, cientistas e engenheiros, são coisa mais recente, vinda do desbravar que se foi fazendo mais complexo, da necessidade de especializar mais e melhor.
32. Entre os elementos de comparação entre a civilização europeia e as outras equivalentes que Eric Jones[22] releva, a ausência de impérios duradouros tem como correlato a relativa autonomia da actividade comercial de­senvolvido numa Europa dividida e com muitas costas marítimas e rios navegáveis ; foi um comércio de grandes volumes de merca­dorias correntes, o interesse dos reis sendo mais o de as tributar do que de as confiscar e matar a galinha dos ovos de ouro, enquanto que, segundo Jones, os mercadores dos impérios asiáticos, enriquecendo, nunca estavam seguros de não atraírem a confisca­ção arbitrária dos imperadores, os quais, ao contrário dos reis eu­ropeus, “não queriam estar sujeitos à lei e não proporcionaram legislação imparcial aos seus súbditos” (Jones, p. 61). Ora, esta mobilidade relativamente autónoma do comércio internacional é frequentemente acompanhada pela mobilidade dos textos, impressos ou manuscritos: o que releva da escola e o que releva do mercado, movimentos que mantiveram uma marginalidade relativa à dualidade da nobreza e dos camponeses, ao domínio da riqueza da terra e do poder nas mãos da aristocracia, de que o rei é a cúpula. Até que, inventando as máquinas e a electricidade, a burguesia impôs o mercado e a escola, ou seja a regra das cidades, a esta economia de energia biológica.
33. Seria possível contrapor uma segunda charneira de 70 anos à da transição da Cristandade para a Europa (1450-1520), agora entre a Europa clássica e a Europa moderna: 1750-1820. No prolongamento da invenção dos livros e do protestantismo como sua possibilidade aberta, a Enciclopédia (1750-72) diz como no meio do séc. XVIII se estava atolhado de textos, antigos e recentes, sendo precisa uma triagem para seguir em frente, pondo o acento resolutamente nas descobertas modernas sem ter que se começar sempre pela repetição dos Antigos. O Iluminismo abriu o caminho à reforma das universidades nos inícios do século XIX, despejando o aristotelismo e a teologia que ainda dominassem e colocando os cientistas e pensadores, marginais quase sempre durante os tempos clássicos, como professores, como à criação dos liceus e à escola obrigatória (ler, escrever e contar) para todos que rivalizará com os livros sagrados das igrejas. A invenção da máquina a vapor (1776) veio a dar origem aos comboios (1814) que vieram a conseguir unir as várias regiões num espaço nacional. No campo político, a Revolução Francesa (1789) e o Código Civil napoleónico instaurando uma ordem burguesa, as revoluções das independências americanas dos Estados Unidos (1776) ao Brasil (1822), esta a única que não foi republicana.

As duas primeiras grandes etapas da Modernidade
34. Interpretámos a proposta de Lévi-Strauss para pensar as sociedades humanas a partir das alianças entre genealogias familiares que trocam mulheres para evitar o fechamento incestuoso endogâmico e o laço global que a ordem do parentesco instituída por esses laços de aliança representa. A questão a colocar é o que sucede a esse duplo laço no que diz respeito às sociedades actuais. Creio ser possível pensar que essas alianças, tendo conhecido as limitações de endogamia de casta, não deixaram no entanto de ser as bases das estruturas sociais das sociedades históricas de dominância agrícola, com o jogo dos usos das castas guerreiras e sacerdotais a garantirem o laço político-religioso mais poderoso, o do reino, que cobre os laços regionais das ordens do parentesco. Na minha ignorância do ofício de historiador, imagino que estes laços são relativamente visíveis para que as análises os tenham implicitamente em conta. A questão que se porá é a de se saber o que é que constitui hoje a base da unidade das sociedades complexas compostas de duas redes fortemente diferenciadas, por um lado a das instituições em que se trabalha e por outro a das famílias e lazeres, sabendo-se que os humanos pertencem a ambas as esferas, mas em lugares e tempos diferentes, segundo laços sociais que também não coincidem. Se é certo que o casamento incestuoso continua hoje a ser interdito como regra social em todo o lado, as alianças dos casamentos continuam a vingar mas tendo enfraquecido a força dos seus laços, como se viu a partir do ano charneira de 1968. Mas como é que a rede das famílias se enlaça socialmente com a razoável variedade das unidades de trabalho? E estas, que unificação conhecem? As respostas a estas questões serão esboçadas seguindo uma análise (de leigo) das alterações maiores provindas das grandes fases das sociedades dos dois últimos séculos.
35. A primeira fase da re­vo­lução industrial ocorreu desde a segunda metade do sé­culo XVIII (em Inglaterra) até aos finais do século XIX. Foi ca­racterizada pela máquina a vapor, o carvão, o ferro e a primeira química, tendo multiplicado as fábricas em torno das cidades de algumas regiões, os comboios tendo permitido que quer o carvão quer as matérias primas e as próprias máquinas fabricadas pudessem circular vindos das minas. Uma primeira rede de caminhos de ferro atravessou as paisagens, criando ligações entre as principais regiões, abrindo a geografia das jo­vens na­ções modernas, assim como os oceanos atravessados pelos navios a vapor facilitaram as trocas entre a Europa e as suas antigas colónias tornadas independentes pelos novos ventos da modernidade. As regiões industrializadas ganharam cinturas de fábricas e bairros de habitação do proletariado vindo dos campos como nova classe tra­balhadora, fábricas e bairros frequentemente péssimos do ponto de vista ecológico (com algum paralelo com a escra­vatura, base da agri­cultura dos nobres guerreiros de outrora). Criou-se assim uma paisagem urbana fortemente contrastada, por um lado as cidades onde se constroem prédios para as burguesias que a indústria promove e por outro os subúrbios de miséria, propiciando antagonismos sociais fortes, animados por sindicatos reivindicativos, bem como disputas políticas eleitorais que por vezes não impedem verdadeiras guerras civis, se as disparidades proporcionam centelhas que fazem explodir os ânimos. Penso que este movimento de populações vindas do campo para as cidades, as fortes lutas em torno das suas condições de trabalho com as organizações que as enquadram, merece o nome genérico de socialismo histórico: nunca terá havido até então movimentos de população tão grandes na história social do Ocidente. Este quadro de afrontamento, em que a luta de classes se oferece com evidência, torna difícil falar de unidade social, as relações de parentescos sendo claramente de exclusividade social: nem sequer se poderá falar de língua comum, o calão do proletariado analfabeto sendo incompreensível para as elites escolarizadas que lêem livros e jornais. Mas o en­sino pri­mário obrigatório e liceal instaurados criam franjas de intelectuais e activistas que fazem pontes para as massas proletárias. Entretanto o novo proletariado que esvaziou os campos tornou também improcedente a escravatura que serviu de base parcial de apoio ao mercantilismo europeu e colonial, e foi possível abolir essa chaga social que já viabilizara a ‘modernidade’ cosmopolita da Antiguidade grega e romana: em princípio os novos proletariados que substituíram os escravos seriam cidadãos de pleno direito, mas tiveram de se organizar e lutar para o conseguir.
36. A segunda fase foi desde o fi­nal do século XIX até aos três quartos do século XX, por altura do nosso 25 de Abril. Aonde a máquina a vapor e o seu carvão servem de emblema à primeira fase, poder-se-á dizer que a electricidade por cabos é o emblema da segunda. Inventada durante a primeira fase, ela caracterizou-se pela iluminação das ruas e das casas em vez do gás e do azeite, assim como pela substituição das máquinas a vapor e carvão por motores eléctricos (o que veio a beneficiar extremamente a ecologia interna das fábricas e dos arredores das cidades) e de explosão (além dos motores de jacto e nucleares). Além dela, também as invenções do petróleo e da química do plástico, assim como as do aço e do cimento, do betão armado que tornou possível a explosão da construção civil. A transformação das paisagens geográficas trouxe o fim do isolamento das regiões tradicionais, já que os transportes por automóveis e autocarros se acrescentaram aos comboios e aviões para generalizar as viagens de todo o género, migrações, negócios, turismo. A que se acrescenta, os elevadores eléctricos permitindo subir os andares a alturas antes proibitivas, o crescimento desmedido das cidades iluminadas por prédios de betão que se enchem de populações da classe dita média saída dos liceus generalizados a muito mais gente, classe dos empregados de escritório e de serviços, dos técni­cos de inú­meras especializações. Com efeito, depois de ter ali­geirado fortemente a dureza do trabalho operário nas fá­bricas, esta fase levou à dimi­nuição do proletariado nos países mais indus­trializados, como na fase an­terior sucedera com os trabalhadores da agricultura. Mas também levou inúmeras mulheres a descobrirem o caminho dos empregos ou­trora masculinos e a sairem da zona habitacional das famílias onde a maioria ficara acantonada desde o fim das casas, tendo frequentado a escola e beneficiado dos novos electrodomésticos que se vão inventando: este movimento social extremamente forte poderá chamar-se feminismo, que não apenas as suas intelectuais e activistas. Do ponto de vista das linguagens, esta fase caracteriza-se pela invenção de novos médias além dos livros e jornais, capazes de sons, tanto vozes como músicas, como de imagens em movimento (a fotografia relevou da fase anterior). Na primeira metade do século, esta segunda fase foi dilacerada por duas tremendas guerras mundiais, resultantes da maneira como as economias das sociedades mais avançadas eram exacerbadamente nacionalistas e concorrentes no comércio global que os navios tornaram possível, globalização incipiente essa que a Inglaterra quis que se fizesse de forma liberal, isto é, desprotegida, e a que a Alemanha quis (sobretudo da segunda vez) impor meios militares de ocupação territorial de quase todas as nações da Europa. Após a derrota dessa guerra ignóbil, a recuperação das economias a partir das ruínas permitiu uma época de consolidação que deu espaço às reivindicações sociais, permitindo criar nas sociedades europeias mais avançadas um complemento à esfera das instituições de trabalho voltado para carências específicas da esfera do parentesco que os salários não conseguiam colmatar: relativas a saúde, educação e pobreza, o chamado estado social, resultado em grande parte do revisionismo marxista como social democracia, embora frequentemente os partidos se reclamando da democracia cristã tivessem feito parte da implementação política desse estado social.
37. É durante esta segunda fase que as novas das invenções e descobertas europeias (termo que aqui inclui os Estados Unidos e exclui Portugal e outras periferias) vão chegando às outras sociedades que vão recebendo ecos desses progressos e se deixam seduzir pelas suas promessas. A dificuldade geral, a que parece só o Japão ter escapado, é
a de, tendo permanecido em estádios pré-modernos, não poderem importar indústrias, já que nomeadamente elas exigem uma escolarização que demora tempo a dar os frutos desejados. Além disso, muitas sociedades estão colonizadas, nomeadamente as de África e até na Ásia a Índia e a Indonésia, ou algumas das islâmicas, submetidas a administrações e tropas de sociedades mais desenvolvidas. Para todas estas, o primeiro problema será o de se baterem para conseguirem independência política. A dificuldade geral será então a da aceleração social necessária para se poder chegar aos patamares das sociedades pioneiras da modernidade. A demora na instauração duma rede industrial e do respectivo mercado salarial interno teve como consequência a neo-colonização inicial das periferias europeias e latino americanas por empresas multinacionais avant la lettre, presença frequentemente arrogante que suscitou revoluções, com o modo temporário de solução que foi a liderança imposta por partidos únicos, uns reclamando-se do marxismo seguindo a directiva leninista[23], os outros seguindo progressismos de direita nacionalista. Entre comunismos e fascismos pois, mais ou menos tempo consoante, este processo fez-se na segunda fase, em que o isolamento das fronteiras de cada sociedade era ainda possível, controlável por policias e censuras impiedosas. Façamos uma pausa metodológica, regressando à compreensão destas transformações em termos de duplos laços.

Os três duplos laços transversais das sociedades modernas
38. Assim como nas sociedades de dominância agrícola as paisagens das populações exibiam a diferença abissal entre a nobreza com seus criados em palácios e as casas do povo, com o clero aliado à primeira, nas sociedades em que uma classe média predomina na população, a diferença crucial é agora a que resulta da ruptura das casas: entre as duas redes de unidades sociais, as que têm funções de trabalho especializado e as que cuidam das questões de parentesco, de reprodução das gentes e dos seus lazeres. Os dois laços dessas unidades excluem-se liminarmente, devido às respectivas funções, umas de forma geral da ordem da Natureza e as outras da Técnica que, por via da maquinaria inventada e multiplicada indefinidamente, gerou a modernidade. Se se invocam estas categorias que nunca jogaram nestas análises por falta de pertinência da sua disjunção, é no intuito de ajudar a percepcionar com esta oposição metafísica entre natural e artificial que as relações entre ambas as esferas são fortemente antagónicas: quem sofre esse antagonismo são os que participam de ambas, numa consumindo energias e noutra devendo poder restaurá-las satisfatoriamente. É também onde se situa a questão ecológica que nos ameaça a todos cada vez mais.
39. Enquanto que a esfera do parentesco é homogénea no sentido em que as suas grandes funções são as mesmas, não obstantes as divergências de usos segundo as tradições antropológicas e as diferenças de classe social, a esfera da produção é por definição especializada segundo maquinarias e produtos diferentes, desde os que relevam da actividade agrícola às diferentes indústrias e aos serviços que se têm multiplicado após a última grande guerra. Nesse sentido, a esfera do trabalho é composta por sectores que se enlaçam com razoável autonomia entre eles. Por exemplo, o que diz respeito às actividades de alimentação em geral, desde a agricultura e a criação de gado à agro-indústria, as lojas de alimentos, cantinas, restaurantes, sector que se destaca pela importância dos prazos mais ou menos apertados de validade dos seus produtos resultante de vegetais e animais; a este sector liga-se o da saúde, com as suas diversas componentes clínicas e hospitalares, indústria farmacêutica, farmácias e análises, centros de saúde, e por aí fora. Outros sectores são os dos transportes, quer por estrada com as diversas componentes de construção e reparação, de vendas e alugueres, carreiras de autocarros e táxis, regulamentação da circulação e sua vigilância policial, quer por caminhos de ferro, quer por avião ou por navio, todos enlaçando as suas componentes de maneira específica. Construção civil, mobiliário, e por aí fora. Outros sectores, como o do turismo, cruzam alguns destes.
40. A estes sectores que fazem laços justapondo-se ou cruzando-se parcialmente, mas parecem todos relativamente autónomos entre si, três duplos laços se acrescentam, tipicamente desenvolvidos com a modernidade, que atravessam estes sectores assim como são transversais à esfera do parentesco. A análise do duplo laço relativo à esfera da produção e do mercado foi feita de forma luminosa por Marx, ao distinguir o que chamou “forças produtivas” e “relações de produção” e ao insistir na sua unidade contraditória. O primeiro laço releva da técnica, é a relação de manuseio que os trabalhadores têm com as máquinas, matérias primas e produtos; ela tem como operadores de topo o Engenheiro, que predominam na organização interna da produção e no que diz respeito à qualidade dos produtos (também em produções não industriais, por exemplos, o chefe de cozinha dum restaurante, o chefe de redacção dum jornal). O segundo laço releva do mercado, é a relação de propriedade do capital com as máquinas, matérias primas e produtos, e é do alcance do Economista, tem a ver com as contas de dinheiro e mercadorias no exterior da empresa, compras e vendas, empréstimos e pagamentos, lucros e salários. Reenviando para “A Economia Política por vir enquanto ciência terapêutica”[24] para a análise de conjunto, basta aqui dizer como o mercado enlaça transversalmente o conjunto da sociedade, todos os seus sectores e ambas as esferas, sendo a moeda o ‘motor’ que lhe dá o movimento de troca incessante, mudando constantemente de mão em mão, de loja em banco, adequando-se à imensa aleatoriedade dos negócios e das necessidades de consumo. Na sua base, a moeda é um factor da liberdade de compra de cada um, dentro dos limites do seu orçamento.
41. Os duplos laços relativos à esfera do parentesco implicam que as diferenças entre as famílias continuam a ter relação às duas genealogias que o casamento aliou, heranças, rendas ou lucros dumas distinguindo-as como mais ou menos ricas do que as que se relacionam com o mercado por via de salários, maiores ou menores; em ambos os casos, o nível de educação conseguido na escola faz parte também da distinção, dos laços que são possíveis entre famílias de ascendências diferentes. Com o fim das autarcias de antanho e das hortas e galinhas, os assalariados das cidades dependem apenas do salário e sujeitos a despesas eventuais que ultrapassam o orçamento familiar, como doenças e estudos prolongados, o que levou a complementar a esfera do parentesco por um estado social que se acrescenta à esfera da produção, hospitais e escolas públicas gratuitas ou de preços moderados, maneira social-democrata de criar igualdade de condições entre as diversas unidades sociais, de atenuar o antagonismo entre as duas esferas. Uma outra maneira foi a organização de eleições democráticas dos detentores do poder politico sobre ambas as esferas ser feita a partir dos locais do parentesco, sendo que, em princípio, os critérios dos candidatos em relação a salários, saúde e educação deveriam ser dirimentes. Acrescem as questões de segurança e ordem pública, de legislação e administração, para caracterizar o duplo laço político do Estado que enlaça transversalmente o conjunto da sociedade, todos os seus sectores e ambas as esferas.

A lógica destes duplos laços modernos
42. A diferença crucial das sociedades modernas, disse-se acima (§ 38), é a que resulta da ruptura das casas entre as duas redes de unidades sociais, as que têm funções de trabalho especializado e as que cuidam das questões de parentesco, de reprodução das gentes e dos seus lazeres, os dois laços dessas unidades excluindo-se liminarmente, devido às respectivas funções. As casas de antanho eram duplamente enlaçadas segundo essas funções, mas nas predominantes, casas agrícolas e de criação, elas não se excluíam: os frutos da fecundidade desse trabalho alimentavam a fecundidade do parentesco, a sua reprodução quotidiana, a qual por sua vez permitia que os humanos e os animais trabalhassem no campo. O paradigma tinha oscilações diárias (comer, trabalhar, dormir), como aliás sazonais, mas a sua unidade não se quebrava, quero crer. Ora bem, a ruptura crucial entre as duas esferas na modernidade é o lugar decisivo da teorização fenomenológica que aqui se busca, já que elas não podem deixar de se corresponderem numa ‘unidade social’, por exemplo de ordem ‘nacional’ (com unidades regionais internas e relações internacionais externas), na medida em que foi a constituição das escolas (e médias), mercados e estados das novas ‘nações’ que caracterizou a transição dos antigos regimes para as várias sociedades modernas. A função social destes três laços transversais é justamente a de tornar possível a unidade do todo social apesar da ruptura entre as duas esferas (por regra toda a gente tem lugar em ambas), é o que há que procurar compreender. Os salários da esfera dos empregos (nem todos são produtivos de mercadorias) destinam-se estruturalmente aos orçamentos familiares, mas nem tudo o que se produz (e se trabalha como emprego) se destina ao consumo de reprodução familiar, uma boa parte do que entra no mercado vai para outras instituições produtivas ou outras. Assim como dentro duma empresa de grande dimensão as diversas oficinas formam uma rede de relacionação entre umas e outras, pode-se considerar que também as relações de mercado entre as diversas empresas produtivas (ou outras) forma uma rede muito mais gigantesca, diferentes e concorrentes, mas cuja saída final do mercado se faz na esfera familiar, mas também sobre o que sustenta ambas as esferas e todo o conjunto social, o que se pode chamar a terra ecológica (vulgo ‘ambiente’), a Terra dos vivos em seus lugares de habitação (eco-). Dizia Heidegger que o próprio dos humanos é habitarem a Terra, a phusis dos gregos, a natureza dos latinos, que há que pensar, não como um passivo ambiente, mas  como Aquela que dá tudo o que é vivo, todo o social portanto também. Social e ecologia são indissociáveis, a economia, a politica e os saberes são parte desta unidade. Para saber como, há que indagar da estrutura destes três duplos laços, quais os respectivos motores e aparelhos.
43. A escola e o mercado são o par de aparelhos que institui a relação entre ambas as esferas: a primeira recebe as crianças das famílias para as entregar adultas aos empregos para onde se orientaram, o segundo retribui a energia e o saber colocados nesses empregos com o salário do orçamento familiar, sendo que o estatuto social que cada um conseguirá atingir depende dos dois factores, o saber profissional e civil (cultura) e o salário, que serão os motivos do seu percurso social, que lhe dão movimento, estímulo, ambição. Tratar-se-á de se apropriar, de fazer ‘motor’ do ego, se se pode dizer, esses dois ‘motores’ sociais, o saber (§ 10) e o dinheiro (§ 40). Ora, a moeda só pode ser motor das trocas no mercado por ser ‘propriedade’ daquele que a detém, passando da propriedade do que compra para a do que vende, segundo a equidade (a lógica dos contratos é serem em benefício de ambos os contratantes) de acordo com a língua conjuntural dos preços; do mesmo modo, só se pode conversar (ou escrever para outrem) por as palavras e frases serem ex-primidas pela boca (ou caneta) de cada um que fala ou escreve, segundo a verdade e as regras da língua. O que implica ser apropriado o que vale estruturalmente como factor de intercâmbio cultural e de troca mercantil, ser desejado por ele mesmo, aquém das relações de troca, como possibilidade de posição social nessas relações: ser-se sabedor, hábil, inteligente e ser-se rico, são os desejos que, a nível individual e familiar, movem as sociedades, dão-lhes ânimo no âmago das respectivas unidades sociais, tanto familiares como de emprego, com fortes oscilações entre solidariedade e individualismo. O dinheiro não vale para Robinson Crusoé na sua ilha, e o saber linguístico recebido de outros, duma longa ancestralidade como cultura, pouco lhe presta além da habilidade de sobrevivência, já que a cultura não é narcísica e só alimenta cada um em ‘conversa’, no sentido etimológico de verter-se solidariamente (con-) para outrem. Ambos os factores são estruturalmente sociais, vindos da tribo para à tribo volver e alargá-la, mas esta apropriação que pode virar ambição, boa e/ou pejorativa, afectando as motivações mais fortes de cada indígena, em sua família ou em seu local de trabalho, a sua maneira de usar nos respectivos paradigmas, é algo sem o quê as sociedades modernas não podem funcionar, para o bem como para o mal. É onde estará a raiz da necessidade do terceiro duplo laço transversal, o do Estado.
44. Em termos muito gerais, este deve ser o garante de que todos os cidadãos o sejam de facto, em suas condições básicas de vida, as que lhes vêm de serem mamíferos; a organização social moderna justifica-se por tornar essas condições melhores, não só do que na selva dos selvagens por onde as nossas histórias começaram, mas também nas sociedades de regimes escravagistas e feudais: o imperativo fundamental do Estado é a garantia de que, seja qual for o regime social, haja para todos os cidadãos alimentação, respiração e descanso nos funcionamentos quotidianos, abrigo e segurança face a agressões de terceiros. Trata-se de ‘direitos elementares’ que se poderão dizer pré-democráti­cos, devidos à constituição biológica dos humanos: nas sociedades modernas é através da Lei que a ordem e a segurança da sociedade civil, a ‘outra’ do Estado, devem ser efectivadas, é ela que motiva todo o seu funcionamento: segundo a antiga fórmula, o Estado age ‘em nome da Lei’. Antes mesmo de se dirigir a cada cidadão, a Lei visa a boa ordem do conjunto das unidades locais, quer produtivas e outros empregos (mormente escolas, médias e bancos), quer familiares.
45. Ora bem, qual é o ‘motor’ daquilo a que se chama frequentemente o ‘aparelho’ do Estado, o que é que o motiva, lhe confere o seu específico movimento? Abordemos a questão, de forma necessariamente sumária, tendo também em conta os duplos laços dos dois outros aparelhos transversais, o mercado e a escola (e médias). Como se disse (§ 10), motor e aparelho dum duplo laço jogam indissociavelmente (é só um laço, que é duplo, nenhum existe por si só) mas segundo lógicas inconciliáveis que lhe permitem mover-se de forma adequada à respectiva circulação. A lei que rege o motor retirado da cena dando-lhe energia, é cega para a cena de circulação (como o cilindro do carro ignora a circulação da rua e os genes e hormonas animais ignoram a cena ecológica), a energia tem pois que ser disciplinada (embraiagem do automóvel, aprendizagem de receitas que disciplinam as pulsões hormonais) pelo aparelho na sua adequação a essas circunstâncias. No caso da moeda, motor do mercado, ela é retirada de ser mercadoria para as fazer circular em trocas (Marx), compras e vendas em que ela circula de mão em mão. É esse retiro – dela mesma, a moeda é cega para aquilo que o seu proprietário de momento compra, a língua dos preços é da ordem do aparelho – que a torna capaz de tesourização, de acumulação financeira para empréstimos bancários, para ser ‘alugada’ à economia como capital que lança um investimento que venha a dar lucros susceptíveis de devolverem o empréstimo e pagarem os lucros do seu aluguer. É nesta acumulação financeira de moeda, que cresce especulativamente, dinheiro que busca dinheiro de forma ‘cega’, sem relação às trocas da economia, ao mercado propriamente dito, é aonde os desejos de enriquecimento intervêm como factores de risco no retorno posterior à economia, quando provocam turbilhões em que várias ‘ganâncias’ se alimentaram em vazio e as falências e as crises sucedem, como se viu na cascata de empobrecimento que caiu sobre nós a partir de 2008. Se sem finanças não há economias modernas, se elas são indissociáveis, as crises são o revelador da sua inconciliabilidade, quando o apetite sem freios de alguns dá cabo da boa ordem quotidiana dos que estão excluídos desses apetites (ou se limitam a jogar nas lotarias). Seria possível fazer um paralelo da economia com os saberes que a escola ministra: retirados por abstracção dos usos e costumes das famílias que é normalmente sua função implementar (as receitas do que se deve fazer), aprendem-se em exercícios que se poderiam dizer ociosos, gratuitos, de forma a estruturar as inteligências – conhecimentos, pensamentos – resolvendo problemas abstractos relativos à complexidade social e humana. Este retiro, que artigos e livros prolongam como complemento da escola, que buscam explicar, desdobrar o que se dá como complexo demais nas cenas terrestres e sociais (como aqui se tenta, abstractamente !), presta-se ao que se poderia chamar acumulação especulativa que se afasta do que é cena complexa reduzindo os saberes a formas ideológicas simplificadas e susceptíveis de parecerem verdadeiras. Fascismo, nazismo, comunismo, foram ‘pensamentos únicos’ que, por um desejo de compreender excessivo, afastaram outros discursos – mais difíceis porque atentos à dificuldade dos problemas – para se proporem como solução (cega) de todas as problemáticas, manifestando-se a sua inadequação nas formas ditatoriais de se imporem, na incapacidade de dialogar para se adequar às questões e soluções. Este motivo do ‘pensamento único’ indica um motor a funcionar em vazio, especulativamente, ignorante das circunstâncias que complexificam qualquer conhecimento ou pensamento digno desse nome: se as sociedades modernas não podem funcionar sem os discursos de conhecimento e pensamento da escola e dos médias em tantos e tão variados aspectos das vidas, as ideologias que se extremam em pensamento único e total – a arrogância do neo-liberalismo com que uma direita descentrada nos governou entre 2011 e 2015 – mostram como os saberes podem ser inconciliáveis com a reprodução das sociedades. O agente do Estado, como outrora o rei (Hegel), enquanto age para implementar a autoridade da Lei, é retirado do estatuto corrente de ‘cidadão’: governante, deputado, juiz, polícia, eventualmente funcionário público, recebe da Lei um estatuto de ‘fazedor de ordem pública’, se se pode dizer, que lhes confere autoridade em nome da Lei para ser ‘motor’ do Estado em situações concretas face a cidadãos. Há várias maneiras de exemplificar como é que esta autoridade em nome da Lei, indissociável da boa ordem social e pedindo uma democracia justa, como diremos a seguir, se pode mostrar inconciliável com essa função de ordem e segurança, a mais óbvia sendo o abuso da força das armas para resolver conflitos sociais, assim como as ditaduras que nessa força se apoiam. Ao nível dos agentes, pode-se dizer que a corrupção, que consiste em receber dinheiro pela calada em troca de favorecimentos particulares, é a maneira do agente do Estado usar do seu bolso de cidadão; igualmente a maneira autoritária e por vezes brutal de agir, a coberto da autoridade, é uma espécie de ‘corrupção do pensamento’ que faz daquele que deve ser neutro em nome da Lei um cidadão exasperado.

A questão da democracia
46. As sociedades modernas escolheram a democracia como regime mais adequado para controlar a lei da guerra (§ 12), tendo em conta quer a complexidade da sua organização, em que ninguém tem saber abrangente das suas inúmeras questões, quer a maioridade politica da Razão (Kant) que o saber da escola e o efeito sobre ele dos médias conferem aos cidadãos, cujo conjunto forma a chamada opinião pública. Pode-se incluir a democracia e a respectiva autonomia dos cidadãos como inerente ao motivo de sociedade moderna, como estou propondo? A dificuldade é que se trata de motivos que abrangem as noções de justiça e de ética que estão fora do âmbito dos motivos das ciências sociais, com que a fenomenologia que aqui se pratica se liga. Talvez se possa enfrentar esta dificuldade através do motivo de possibilidade de Heidegger (Ser e Tempo) que caracteriza o ser no mundo. As possibilidades de cada humano (de cada família, de cada empresa) são simultaneamente desse humano e do mundo tribal em que ele se fez e se faz dia a dia: tanto são de ordem da estatura e do sexo como do estrato social e dos estudos, como da idiossincrasia, das suas paixões e ambições, de tudo isto se tendo feito um dado estilo singular de ser no mundo. Ora bem, o horizonte democrático da acção do aparelho de Estado será o de respeitá-las e de fomentá-las, de deixar serem (ainda Heidegger) essas possibilidades nos limites do jogo social. O que implica pôr em questão a noção de ‘poder’ como substantivo, que tem alcance sobre outrem, cerceando-lhe as suas possibilidades no seu mundo, cortando-lhe o que ele pode (‘poder’ como verbo). A autoridade em nome da Lei, ainda quando condenar e prender um criminoso (há que lhe deixar outras possibilidades suas, de estudar por exemplo frequente), não se deve confundir com ‘poder’, a exemplo dos pais e professores que têm autoridade sobre filhos e alunos mas em ordem a deixarem de a ter à medida da evolução das suas possibilidades. Esta perspectiva permite entender o triunfo da palavra politica de Barack Obama em 2008, “Yes, we can”, que terá inspirado o partido de renovação politica espanhol “Podemos”. Mas assim como os pais e professores, também os proprietários de empresas de produção e outras, ao contratarem cidadãos para nelas ocuparem um lugar no organigrama, deverão atender às possibilidades de cada um no lugar atribuído, deixar-lhe a autonomia que é boa para ele e para as suas funções na empresa, fazer jogar relações de autoridade na indispensável disciplina e não de ‘poder’, já que se trata de concidadãos seus. Há que esperar que o conjunto da empresa beneficie desse funcionamento democrático.
47. Tentemos dizer qual é o interesse teórico deste motivo de duplos laços nas sociedades modernas. A primeira observação a fazer é que ele não faz nenhuma concorrência aos historiadores ou sociólogos, no sentido em que é a eles que pertence dizer os ‘elementos sociais’ que em qualquer investigação relevam de tal ou tal duplo laço e guarda a competência de analisar esse conjunto, segundo as suas metodologias, o seu laboratório. O interesse do motivo consiste em permitir aceder à autonomia do ‘movimento’ desse conjunto que dependerá de duas leis, por um lado indissociáveis, o que faz dele uma unidade, e por outro inconciliáveis, o que dirá como essa unidade se move temporalmente em convergência e conflito com outras. Voltemos ao caso duma fábrica. O laço técnico dá conta do que nela se faz, entre gabinetes de concepção dos produtos e cadeias de fabrico, da vigilância do engenheiro sobre a qualidade programada, assim como acompanhar a efectivação do organigrama do pessoal nas suas várias competências. A lei a que este laço obedece é a do que se pode chamar o ‘valor de produto’ que as oficinas têm que conseguir entregar ao laço dos que encaminharão os produtos para o mercado. O laço do economista encarregar-se-á de atribuir um preço de venda como ‘valor de troca’, tendo em conta os custos consentidos, os impostos e as amortizações de máquinas, etc., buscando conseguir a maior mais valia possível. Duas leis – a melhor qualidade e o maior ganho – isto é, a do engenheiro indissociável da do economista, mas este querendo baixar os preços à custa, dirá o engenheiro, da qualidade, as leis são inconciliáveis no que se busca como a melhor qualidade e preço. Por outro lado, os salários pagos correspondem aos laços da empresa com as famílias dos trabalhadores e aqui, lucros e salários são indissociáveis (capital e trabalho) mas as leis são outras, as da reprodução da fábrica e da família do proprietário e as da reprodução das famílias dos trabalhadores: é onde a inconciliação se esconde nas contas do economista e se manifesta na insatisfação dos trabalhadores e nas lutas dos sindicatos. Com efeito, os salários são vistos pelo economista como ‘custos’, à maneira das matérias primas, na lógica da esfera de produção, enquanto que os cidadãos assalariados os recebem na lógica do parentesco como paga mais ou menos justa. Só que não há nenhum critério neutro, aritmético ou científico, para decidir na repartição das mais valias obtidas entre salários e lucros, a decisão é sempre política – greve, concertação, contrato colectivo, imposição estatal –, o que tem como consequência que as contas dos economistas, com pretensão científica, escondem de facto a favor do capital uma relação política que assinala desde este primeiro nível uma falta de cientificidade da economia, as posições tomadas pelos economistas sendo por regra uma tomada de partido oculta pelo lei do capital sobre a da produção técnica, incluindo as condições qualitativas de trabalho. Antagonismo pois entre as duas grandes esferas, que a economia, enquanto ciência social, deverá por a nu a dimensão politica.
48. O duplo laço da escola, relativo à escrita e às contas que qualquer cidadão tem que dominar para os seus próprios interesses, desenvolveu-se em patamares sucessivos de especialização que determinam os lugares a ocupar nas hierarquias da esfera do trabalho, o que sublinha o seu carácter transversal, como que de distribuição dos cidadãos pela diversidade dos postos de trabalho segundo as competências que dela receberam. Mas obviamente que ela não pode ter esse papel sem que este seja prolongado pelos livros que desde o Renascimento a tornaram possível, fornecendo-lhe o que ela proporciona aos que a frequentam: os saberes acumulados ao longo dos séculos e reelaborados constantemente; o respectivo ‘motor’ são os seus mecanismos de aprendizagem a que responderá, de maneira fortemente aleatória, a curiosidade de cada aluno/a, de cada turma, e o engenho pedagógico de cada professor/a. Em seus livros e mestres, a escola recapitula a fabulosa história dos saberes em suas múltiplas disciplinas[25], segundo uma lei da verdade que os professores repetem e a que os alunos submetem em provas de avaliação das suas aprendizagens. Uma escola enlaça professores e alunos indissociavelmente, no sentido em que ambos são regidos pela lei do saber a aprender, os alunos ganhando com esse saber possibilidades maiores da sua vida futura e os professores tendo a sua reputação e a da escola dependente desse saber adquirido manifestamente. É nessa manifestação que se percebe a inconciliabilidade, quando o professor vira juiz de avaliação e o aluno busca a nota que não merece. A intervenção de terceiros, a escola, outros professores e direcção, ministério, famílias, sem falar nos rankings das escolas dum pais como se fosse um campeonato entre concorrentes no mercado, complica fortemente esta dualidade elementar da aprendizagem, mostrando que o sistema de ensino se enlaça com outras unidades sociais, além da relação aos saberes e à crítica permanente a que eles estão sujeitos, por definição de modernidade. Destes saberes fazem parte as dimensões ética e política dizendo respeito à actualidade, contada esta, além dos livros, por jornais e revistas que desde os séculos clássicos geraram uma opinião pública que veio a gizar debates de ordem política e social em ordem ao esclarecimento democrático dos cidadãos. A partir do século passado, este espaço público dos cidadãos conheceu novos médias de sons e de imagens, rádio, cinema e televisão que inundaram a esfera do parentesco de músicas e outras formas de conhecimento e de entretimento. Ora bem, qualquer texto de jornal está sujeito à lei da verdade que rege tudo o que da língua sucede socialmente, sem a confiança na qual ninguém compraria um único jornal nem acreditaria em ninguém; o leitor, em relação indissociável com o jornalista que não conhece, não deixa de ter a sua razão crítica que se pode a cada momento revelar inconciliável com o que lê. É aonde ganha um papel preponderante o problema do financiamento, números de venda ou de assistência, relação desses números com a publicidade. A questão é equivalente à do engenheiro e do economista, só que os critérios de ‘qualidade’ do jornalista são mais volúveis, por assim dizer, antecipando os da curiosidade de quem, em seus tempos de lazer, busca neles aprender e/ou entreter-se: neste jogo, ganham as maiorias facilmente, os jornalistas e outros profissionais dos médias elaborando os seus textos ou realizações em vista de atenuar o que haja de crítica inconciliável por uma espécie de cumplicidade na fácil digestão, oferecendo uma qualidade que se revele adequada a quem tem vidas mais ou menos duras ou monótonas: é o que permite os grandes números de venda ou de espectadores. Pelo contrário, quem aposta na exigência cultural dos seus leitores, vê a inconciliabilidade diminuir-lhe os que se manifestam à altura da indissociabilidade de tal serviço. Poucos mas bons, em eco aos antepassados culturais que tornaram possível esta modernidade, que também em seu tempo sofreram as mais das vezes de serem minoritários, solidão que é a paga da paixão de viver que a obra cultural desencadeia.

Do lado das famílias, dos cidadãos
49. Em consequência, o discurso público, outrora feito através de sermões, aulas, discursos, conferências, isto é, formas destinadas à ‘elevação’ das práticas sociais, tornou-se publicidade[26], que é o nome de todo o discurso que vem da esfera do trabalho com destino à do parentesco, com grande atenuação dos lugares autorizados donde se possa esperar, como dizer?, discursos de orientação crítica relativa ao social. Vive-se em família em torno do ecrã: o duplo sentido desta palavra é elucidativo, ‘aquilo que se vê’ é o ‘obstáculo’ a ver-se, faz ecrã além do que se vê, impede de compreender a relação do ‘dado a ver’ com o sistema geral que o sustenta segundo a sua lei de reprodução. O que está aqui em questão é o ser no mundo que cada um de nós é, conforme Heidegger e Derrida nos ensinaram: o que se aprende de outros faz-se nosso saber pessoal com o apagamento daqueles que nos ensinaram, enquanto que a eficácia das imagens e slogans publicitários é evitar esse apagamento, é sermos perseguidos por frases e pequenas histórias aliciantes, heteronomia que permanece e nos tolda a autonomia, as possibilidades, a liberdade e a solidariedade. O quase desaparecimento de autoridade ética faz parte do relativismo geral em que os discursos sobrevivem e as imagens nos perseguem, sem que ninguém saiba hoje como é que este estado de coisas pode ser modificado no sentido da boa reprodução da esfera do parentesco, da sua cultura e entretimento fortemente plural.
50. Esta sofre uma transformação inédita, recebendo as sociedades ocidentais ao retardador os efeitos da divisão das casas de antanho na libertação das mulheres e dos jovens, na reelaboração do paradigma no respeitante à sexualidade em que imperava o medo do adultério das ‘mães’. Com efeito, do lado das famílias, o duplo laço joga-se não apenas no orçamento que resulta de ambos os salários, mas no conjunto do paradigma, segundo uma lei que rege o bom funcionamento da unidade social. Cada um dos membros dela, tendo interesse na boa efectivação dessa lei em seu proveito, poderá ser tentado a escapar ao que lhe compete, desde a contribuição com o seu salário como a energia nos usos domésticos, consoante o seu lugar. O divórcio, que tem sempre múltiplos motivos, é a constatação da inconciliabilidade entre estas duas leis no que ao casal diz respeito, frequentemente os laços respectivos de cada um à sua instituição de trabalho sendo parte do conflito, mas também a persistência da tradição patriarcal de cujo machismo muitos jovens parecem ter tanta dificuldade em se libertarem como aqueles que vimos de antes da explosão do feminismo. 51. O mercado e a escola (com os médias) são pois dois laços transversais às duas ordens de unidades sociais, produção e parentesco, inscrevendo os seus emblemas de valor (dinheiro por um lado, slogans e estrelas mediáticas por outro) na individualidade de cada cidadão, sobredeterminando, se dizer se pode, as aprendizagens incessantes dos diversos usos e contribuindo para o carácter caótico das vidas urbanas. Se o termo ‘caótico’ tem aqui implicações éticas também, ele diz preferentemente o equilíbrio inacreditável, impossível, das imensas multidões de indivíduos livres nas suas agitações quotidianas, o espanto fenomenológico diante deste funcionamento razoável das metrópoles, por certo com muitos defeitos e merecendo inúmeras críticas, mas que funcionam razoavelmente. Mas só em razão do terceiro grande laço social transversal, o da administração da ordem e da justiça pelo aparelho de Estado, que pede como ‘motor’ as duas esferas de unidades sociais de ordem da produção privada, as que produzem mercadorias e serviços e as que reproduzem os cidadãos, correspondendo aos interesses pessoais de quem trabalha – lucros e salários – e das respectivas famílias: o papel dos impostos visa a efectividade desse duplo laço. As respectivas unidades sociais de administração pública, tendo como unidades de trabalho locais e horários equivalentes aos outros (em sua grande variedade), destacam-se crucialmente pelos fins das suas práticas: nem colocar produtos no comércio nem buscar lucros, mas garantir as funções públicas de ordem, justiça e salvaguarda dos cidadãos mais fracos. A corrupção é o desvio destas funções para interesses privados.
52. Será possível detalhar algo dos duplos laços do ser no mundo dum cidadão humano de hoje, aquilo que muitas vezes se coloca como o problema da identidade? Ninguém é apenas um ‘corpo’ envolvido em pele, que as marcas dos seus percursos são laços a que chamamos memórias que se vão enxertando umas nas outras e desse misturar fazem amálgamas do que se lembra e do que esqueceu. A começar pela memória perdida do feto no ventre de sua mãe e a dos dois ou três primeiros anos de dado à luz, das aprendizagens tacanhas, gatinhar, andar, primeiras mexidas e palavras, que, de se terem aperfeiçoado, foram esquecidas indelevelmente pelo que lhes sobreveio: foi o que Freud indagou nos sonhos como aquilo que o peso do social não deixa voltar, de tal forma foi necessário corrigir, domesticar o que daí sairia. Esse início de disciplina paradigmática estruturar-se-á como laço – inconsciente – ao familiar e à creche ao longo dos anos, dos jogos e do que se aprende na escola, mas também desenhos animados e jogos electrónicos, descoberta de artes, desportos ou outros interesses, passageiros ou não; depois as especializações em ofícios, a nova família, a compreensão cívica que se vai ganhando culturalmente do mundo em que se é, se vive: são laços a lugares e acontecimentos que permitirão mais tarde reconhecer outros, com agrados ou temores. O motivo ‘laço’ é a entender de maneira literal: fica-se ligado efectiva e afectivamente, a favor ou contragosto, a tal acontecimento – ‘gentes lugar momento’ – que jogará na maneira como se agirá no próximo acontecimento, na próxima decisão a tomar. A memória não é uma coisa interna, cerebral, mas marcos do passado dum laço no mundo. Como dizia Heidegger alongando o motivo fenomenológico de intencionalidade, quando noutra cidade se pensa na ponte medieval de Heidelberg, está-se a distância ao pé da ponte e não ao pé duma representação mental na cabeça. Que todos estes laços, afectos efectivos que somos, se enlacem no nosso corpo orgânico, sabe-se lá como, no nosso funcionamento quotidiano, fazendo o duplo laço que é conhecido como psico-somático, só parece possível porque esta feliz (ou não) dispersão ao longo da história de cada um se volve necessariamente ‘esquecimento’, que é como se reserva o que chamamos memória: ‘tudo o que sabemos’ está lá sem estar, capaz de vir (‘souvenir’, diz-se em francês) em conta gotas quando tem que ser em tal lugar momento; temos então consciência duma certa unidade pessoal. E o que é que faz este duplo laço de cada vez? Por um lado, estabelece a unidade do indivíduo cidadão com a cena do Mendo que ele é nessa vez, nesse acontecimento, é o laço de maleabilidade (ou liberdade) com o mundo, outros e coisas desse acontecer; por outro lado, recebe do laço que é o seu passado de ser no mundo no orgânico a energia, a luz, o gosto de assim se mover, de bom ou maugrado consoante o duplo laço se revela mais ou menos inconciliável. Não se pode dizer que seja fácil, que ter-se prescindido da velha ‘alma’ ou do ‘sujeito’ não é para tornar as coisas mais simples de abordar. O enigma humano é rebelde a quem o quer conhecer, mal o balbuciamos.

A libertação do ano de 1968
53. O mês de Maio francês de 68 ganhou sem dúvida uma espectacularidade única mas foi parte duma malha de acontecimentos, de revoltas juvenis, de Tóquio à Califórnia, passando nomeadamente por Praga, Alemanha, Itália, Brasil e pela contestação americana da guerra do Vietname. Esta malha é, enquanto tal, de explicação difícil mas o carácter exemplar da greve dum mês das universidades e fábricas que paralisou a sociedade francesa sob impulso das suas juventudes, as trabalhadoras e as que se preparavam para as funções dirigentes, dá a entender que se tratou duma espécie de cataclismo, manifestando com fragor o antagonismo da esfera do trabalho face à do parentesco, despoletado pela parte jovem rebelde desta. O duplo laço dos paradigmas familiares sobre a aprendizagem que vinha das sociedades anteriores arrastava consigo uma disciplina sobre os jovens que foi posta em questão pela frequência da escola como lugar outro do que o da família, abertura da liberdade, como se disse (§ 28), ou das fábricas para os jovens operários mais escolarizados. Provavelmente por dois tipos de razões. Por um lado, os automóveis e os electrodomésticos que se generalizavam então, máquinas que intervieram de forma inédita na esfera do parentesco, fizeram as novas gerações aprender usos de pilotos modernos que as dos respectivos pais não conheciam; por outro, o cinema e as televisões trouxeram inopinadamente um alargamento do universo narrativo além do tradicional da região, igualmente inédito para as gerações dos pais que as mais das vezes não acompanharam senão de forma recriminativa. O que significa o surgir duma ruptura de gerações e da revolta consequente contra as autoridades, escolares, patronais e familiares, contra a rigidez hierárquica das instituições escolares e produtivas, contra a disciplina quotidiana arcaica dos paradigmas que elas reconduziam. Foi sobre a sexualidade que uma boa parte dessa revolta incidiu, como se viu na sequência, o surgimento dos movimentos de libertação sexual, feminismo, gays e lesbianismo, a multiplicação de divórcios e de casamentos sem papel civil, e por aí fora. Mas incidiu igualmente sobre a própria atitude de revolta como afirmação individual, solidária, política, contra as relações hierárquicas tradicionais: nas instituições de trabalho entrou o ‘tu’ aos chefes, a contestação das gravatas, as barbas, etc.[27] Sem dúvida que houve no Maio de 68 francês um discurso político revolucionário marxista, mas esse a sequência mostrou ser mais um estertor do que uma inauguração.
54. Esta revolução sexual, bem vistas as coisas, acaba por ser uma espécie de ‘resposta’ da longa sequência histórica das sociedades ocidentais ao que caracterizámos, com Lévi-Strauss, como a base das sociedades humanas, a aliança entre duas famílias que é o casamento enquanto troca de mulheres. Porque foi esta base da esfera do parentesco – em metrópoles em que as famílias não se conhecem a maior parte das vezes quando um namoro se estabelece – que se tornou instável, multiplicando as formas e por isso os laços de cada um, consoante os casamentos dos respectivos pais, com a consequente instabilidade dos quadros de vida das crianças, se for certo, como parece, que seja a estabilidade das aprendizagens dos usos e dos afectos nos tempos mais precoces que justificam a aliança entre homem e mulher, os quais se vinham desligando da respectiva ascendência, recusado o ‘negócio’ do casamento feito pelos pais em função de questões de heranças (que são do laço ancestral das casas a parte visível que resta, a das famílias com fortuna).

A terceira etapa da Modernidade é a actual
55. Com cerca de 40 anos, esta última etapa está no seu início, e parece dever ser caracteriza­da pelas transferências electrónicas (de textos, números, músicas, imagens) pela in­ternet (inter-rede), permitindo o tratamento e circulação de ‘linguagens’ várias, assim como pelo desenvolvimento de redes de transporte de passageiros e de mercadorias (camiões tir, navios e aviões cargueiros). Ora, o ‘trans’ das transferências e transportes indica que se trata de passar dum local para outro : a globalização é de realidades que, desde as regiões de outrora às nações modernas, são essencialmente locais, são elas, incluindo as unidades sociais, empresas e famílias, que são modificadas por essas redes globais. Esta globalização das redes de transporte e de comunicação electrónica fomentou, além de fortes e anárquicos movimentos de migração, o desenvolvimento de grandes empresas multinacionais (começou-se a falar delas no início dos anos 70) com a predomínio dos Estados Unidos e o enfraquecimento relativo da Europa (apesar da União estabelecida entre as suas nações para evitar a perca de influência na modernidade global, elas que lhe deram origem) e, já neste século, emergência em aceleração rápida das potências de grande população do dantes chamado Terceiro Mundo, o Segundo Mundo soviético tendo implodido estrondosamente, incapaz da viragem que a China fez, apoiada em duas tradições que a Rússia, de tradição cristã ortodoxa, ignora: por um lado, uma capacidade de iniciativa económica fervilhante que foi despoletada por Deng Xiaoping, e por outro, uma tradição burocrático imperial de mais de dois milénios que tem conseguido, a custo da repressão dos contestatários activistas, manter o poder politico do partido herdado de Mao Tsé Tung.
56. Como foram afectadas as unidades sociais de produção, de índole necessariamente local? Nos países mais desenvolvidos, conheceram robots (electronização das máquinas, dando-lhes uma certa autonomia programada) e computadores com seus programas de software, que aliviam traba­lha­dores de todas as categorias dos trabalhos mais monótonos, mus­cula­res ou de es­crita e contas, mas também os expulsam para um desemprego crescente, assim como fle­xibilizam e tornam inseguro os em­pregos dos outros, destruindo uma boa parte das condições de tra­balho mais huma­nas conse­guidas pelos movimentos sociais histó­ricos dos trabalhadores durante a segunda fase da revolução in­dustrial, desestabilizando as formas de Estado social que aí se estruturaram. Sobre isso, os detentores de capital, que se mobilizou vertiginosamente nas Bolsas electrónicas, deslocaram uma boa parte das unidades industriais para os países asiáticos de mão de obra abundante e barata, acelerando o desemprego no Primeiro Mundo. Esta desindustrialização foi uma bênção para o desenvolvimento asiático acelerado, é certo, onde se encontra um destes paradoxos históricos em que o bem de uns é mal de outros: o poder dos capitais como duplo laço monetário de ordem global, multi-nacional, se jogar reduzindo em suas contas tudo o que de local se lhes opõe, às contas que não querem senão crescer. O que caracteriza as empresas multi-nacionais, que se podem dizer igualmente multi-locais, sabendo-se que constituem assim a unidade de gestão do capital como um enxame de duplos laços com cada unidade local, estas servindo de motor para fazer crescer os números da sede americana, japonesa ou europeia, mas com um efeito perverso de retorsão: as pressões sobre as várias unidades locais e seus trabalhadores que, do ponto de vista da sede, são não-cidadãos, ‘sujeitos’ apenas aos duplos laços políticos locais, inoperantes ao nível dos laços monetários. Quanto aos países de origem das sedes multi-nacionais – cada vez mais a-pátrida, quer o capital propriamente dito, quer as múltiplas nacionalidades dos seus gestores vindos dos quatro cantos do mundo, quer ainda frequentemente com uma sede fiscal fictícia de fuga aos impostos –, elas são protegidas apesar de tudo pelo ‘Estado de origem’, já que os números delas contribuem para aumentar os dele, sem que isso impeça todavia esses Estados de terem que se haver com a crise gerada pelo desemprego massivo devido à electrónica e à desindustrialização, o crescente desemprego jovem hipotecando o futuro dirigente das sociedades, inúmeras unidades familiares sem salários, cidadãos sem condições de sobrevivência em termos de habitação e de saúde, a que se acrescentam os inúmeros migrantes clandestinos vindos das sociedades pobres, aonde chegam as imagens de televisão como chamariz. Como os Estados são por natureza laços da ordem do local e se encontram diante de capitais globais capazes, não apenas de fugirem ao alcance das suas leis, mas também de se fazerem atrair com condições de melhores lucros à custa da desprotecção crescente dos cidadãos locais, as crises tornaram-se não só inevitáveis como incontroláveis politicamente, os Estados como anões políticos e jurídicos diante de gigantes financeiros[28], como se verifica claramente, quer na União Europeia com o predomínio da Alemanha nas suas leis, conseguindo ‘democraticamente’ o que na segunda guerra mundial não conseguiu militarmente, quer nos Estados Unidos em que, sobre um Obama eleito como uma grande esperança popular, caiu de chofre a crise financeira e logo a seguir a feroz oposição republicana (racista?): em ambos os casos, se trata de dirigentes políticos coniventes com a ideologia financeira dominante na própria ciência económica, sancionada pelas universidades e pelos prémios Nobel[29]. Trata-se dum problema que vem desde o século XIX, quando a Inglaterra impôs o seu liberalismo ao comércio internacional e veio a provocar proteccionismos em reacção que desembocaram nas duas guerras da primeira metade do século XX; mas a rapidez electrónica das vendas e compras de activos económicos torna compradores e vendedores ainda mais cegos para o que assim se troca, cegos também e sobretudo para a devastação económica e politica que daí resulta.
57. Uma solução possível teria que implicar um laço politico que se impusesse à guerra dos capitais que domina as sociedades terrestres, o que deveria vir da ONU como sistema efectivo de direito internacional[30], se nela esses antagonismos não dominassem os principais países que aí têm assento, como mostra a impotência ‘global’ face à igualmente urgentíssima questão ecológica. Mas é obviamente impossível falar de ‘soluções’ para crises e riscos que ultrapassam os limites do que foi sempre o objecto do pensamento politico, o Estado e a Nação. As ameaças devidas ao aquecimento global e as que dizem respeito aos limites dos recursos, mineiros, petrolíferos, solos, águas e atmosferas respiráveis, deviam obrigar a limitar o crescimento desmedido das produções tecnológicas, mas encontram como oposição os países mais pobres que querem chegar aos patamares dos mais ricos e a objecção dos que só vêem números: a ladainha de todos os quadrantes políticos e ideológicos é que o emprego exige crescimento económico! É aliás de presumir que a guerra pelos recursos a rarearem seja o futuro que por vezes é antecipado em filmes de terror. Quando reli o que escrevi há uns 30 anos[31] na sequência dum notabilissimo livro de André Gorz, Adieux au prolétariat. Au-delà du socialisme (Galilée, 1980), impressiona-me que a urgência da análise já era tão forte quanto a nossa hoje, os números do desemprego e das limitações do crescimento já vistos como intoleráveis. E é certo que, se houve entretanto dramas infindáveis de fome e doença e guerra, também é certo que há aspectos muito significativos de melhorias, desde o fim do bloco soviético ter-se dado por desintegração interna e não de forma belicosa (o que sucedeu na Jugoslávia não se deu felizmente na URSS) até às centenas de milhões que escaparam à fome, nomeadamente na China e na Índia, mas também na América Latina (cuos regimes militares latino-americanos também se desintegraram). Mas também é extraordinária novidade os laços electrónicos, locais e globais, que se tornaram possíveis nestas poucas dezenas de anos e as promessas enormes que eles veiculam, de solidariedade e de imaginação contagiosa.

A questão do tempo de trabalho
58. À dificuldade do desajuste entre o global dos capitais e o local dos Estados, das democracias, do jurídico sobre o social, acrescenta-se pois a redução dos laços sociais e políticos pelos laços monetários que, ao nível local, deveriam ser regulados fiscalmente em ordem à distribuição democrática do Estado social (saúde, segurança social, sistema de ensino). Sendo impossível, dificuldade das questões e incompetência do escrevente, dizer coisas consistentes ao nível global, já é ousadia que chegue tentar pegar na proposta de A. Gorz ao nível local em que ele a desenhou há 35 anos numa longa citação. Trata-se de decrescer e viver melhor. Para isso, haveria que inverter as relações de dominância entre a esfera do trabalho, da heteronomia colectiva, e a do parentesco, da autonomia solidária: pôr a segunda a decidir sobre a primeira, sobre o que produzir e consumir. Na hipótese do direito ao pleno emprego, todos os activos pertencem a ambas.
59. Trata-se duma “ideia politicamente subversiva [...] supõe que seja abolido o monopólio que detêm, em matéria de decisões de investimento, de produção e de inovação, o capital e/ou o Estado. Supõe um consenso sobre a natureza e o nível dos consumos a que todos devem poder pretender, e portanto também sobre os que convém proscrever, sobre os limites a não ultrapassar. Supõe enfim uma gestão económica visando satisfazer o máximo de precisões com a maior eficácia possível, isto é, com o mínimo de trabalho, de capital e de recursos naturais, em resumo com o mínimo de produção mercantil. Ora, um tal objectivo é a negação radical da lógica capitalista. A escolha da máxima eficácia e do mínimo esbanjamento é tão contrária à racionalidade do sistema que a teoria macroeconómica nem sequer dispõe de instrumentos para se dar conta dela. Com efeito, as economias que, para o senso comum, são despesas que evitámos, e portanto ganhos realizados graças a uma gestão mais eficaz, essas economias aparecem nos quadros dos contabilistas nacionais como percas: como abaixamento do PNB, baixas dos volumes de bens e serviços de que dispõe a população. Vê-se bem aqui como os métodos oficiais de previsão e de cálculo estão viciados. Eles contam como um enriquecimento nacional qualquer crescimento de produção e de compras, incluindo as quantidades crescentes de embalagens perdidas, de aparelhos e metais deitados ao ferro velho, de papeis queimados com o lixo, de utensílios estragados e não reparáveis, de próteses e de cuidados para mutilados pelo trabalho ou pelos acidentes na estrada. As destruições aparecem assim como fontes de riqueza, pois tudo o que se parte, deita fora, perde, deverá ser substituído e dará lugar a produções, a vendas de mercadorias, a fluxos de dinheiro, a lucros. Quanto mais depressa se partem, se usam, saem de moda, se deitam fora as coisas, quanto mais cresce o PNB, mais os contabilistas nacionais dirá que somos ricos. Até as feridas corprais e as doenças serão contadas como fonte de enriquecimento, na medida em que fazem crescer o consumo de medicamentos e cuidados sanitários. Mas que se produza o inverso: que uma boa saúde nos evite as despesas médicas, que as coisas que utilizamos durem metade de uma vida, não saiam de moda nem se deteriorem, se reparem e mesmo se transformem facilmente sem necessidade de se recorrer para tal aos serviços de profissionais pagos, e então certamente que o PNB baixará, nós trabalharemos menos horas, consumiremos menos, teremos menos necessidades” (Gorz, p. 173-5). A automatização progressiva da esfera do trabalho – resultante de invenções científicas e técnicas que pertencem a toda a humanidade e não apenas aos capitalistas – e o desemprego progressivo dos cidadãos, que arrastará também que deixe de haver quem compre o que se produza, sem ter em conta, é claro, o resto do mundo, tornará lógica e realista esta perspectiva, irá abrindo um horizonte pós-crises,.
60. Digamos que se um milhar ou dois de pessoas, emigrantes ou colonos, se encontrassem em uma zona despovoada, seria com esta lógica que se organizariam democraticamente, mas parece difícil de antecipar uma reforma social tal como ela é pro­posta. Percebe-se todavia que ela poderá teoricamente iluminar o futuro ecológico, tanto do ponto de vista dos materiais como dos humanos, dos animais e das plantas, poderá ser um guia lógico para decisões que sejam impostas em situações de crise. Tal fábrica de porcelanas para electricidade com uma centena de trabalhadores, viu na crise da Troika as encomendas baixarem 20 a 30%: em vez de despedir pessoal nessa proporção, diminuiu por consenso com todos, o tempo de trabalho e o salário um dia por semana, por vezes dois, e não criou desemprego (hoje já voltou às 40 horas, exporta quase tudo o que fabrica). A Auto Europa procedia também assim, segundo os jornais. O que significa que sempre que aparecer uma ameaça de desemprego colectivo, é possível diminuir local ou regionalmente[32] o tempo de trabalho de todos sem despedir ninguém. Se for certo que o desemprego actual é em parte estrutural e não resolúvel por “crescimento económico”, será possível caminhar para o pleno emprego às arrecuas, ganhando tempo livre e possibilidades de viver dife­rentes. Para quê, dir-se-á, se nem sempre os fins de semana e as férias são risonhos? Aí é que a perspectiva aberta por Gorz pedirá que “a imaginação tome o poder”, segundo um slogan de Maio de 68, que se “seja realista, fazendo o impossível”, glosando um outro[33], e pode-se pensar que as redes da Teia poderão ser fecundas de ideias e solidariedades inesperadas, adequadas a situações de crise e indo além delas para as prever. Criando redes locais de trocas e serviços, à maneira dos bancos de tempo e das moedas sociais, da economia solidária, definida na Wikipédia como “conjunto de actividades económicas – de produção, distribuição, consumo, poupança e crédito – organizadas sob a forma de autogestão. As novas gerações que já crescem com competência electrónica serão capazes de irem reformando por baixo, localmente, associando-se solidariamente com gentes de muito longe, buscando alternativas em tradições antropológicas diferentes. Eu é que já não sou desse mundo.

Adenda sobre "seculaização e democracia"
em http://filosofiamaisciencias2.blogspot.pt/2016/02/secularizacao-e-democracia.html


Para quem ler francês, um manifesto convivialista

http://www.lesconvivialistes.org/pdf/Manifeste-Convivialiste.pdf





[1] Por exemplo, no Dictionnaire d’Histoire et Philosophie des Sciences de Dominique Lecourt (P. U. F., 1999), a entrada ‘laboratório’ não existe.
[2] Ambas relevam da oposição dentro / fora, interior / exterior, com primado do primeiro termo, que o Dasein de Heidegger procurou ultrapassar.
[3] É corrente que se identifique o ‘paradigma’ com a teoria, mas trata-se de uma má leitura: segundo Kuhn, o paradigma consiste no que os cientistas pensam e fazem no seu laboratório, as suas performances, os seus usos, em que teoria e prática são indissociáveis.
[4] A sua história, desde as gramáticas gregas de Alexandria, é uma história de oscilações entre análises de usos mais literários, variando com as línguas, e análises mais lógicas e filosóficas, válidas para todas as línguas. O século XX conheceu a primeira tendência, a linguística estrutural de Saussure, e a segunda, a gramática gerativa de Chomsky, esta parecendo mais uma técnica de traduções a partir do inglês, língua quase desprovida de morfologia, aquela sendo uma ciência adequada para línguas morfologicamente ricas, pagando o preço de cada língua ter de ser estudada por ela mesma.
[5] A linguística diz respeito à oralidade, não há uma ‘gramatologia’, uma ciência da língua escrita.
[6] A sociolinguística, que não conheço, é uma aproximação ao local social e às variações regionais, profissionais, de classe, etc.
[7] Derrida utilizou este motivo gramatológico sobretudo em questões éticas e políticas. Mas desenvolveu-o lendo Hegel (em Glas), a energia louca dum dom devendo sofrer uma estricção para, digamos, ser viável.
[8] J. Monod, em Le hasard et la nécessité, fala do “estado homeostático do metabolismo celular” (p. 98, subl. meu).
[9] P. Clastres, "Arqueologia da violência: a guerra nas sociedades primitivas", in Clastres e outros, Guerra, religião, poder, [Libre 77-1], Ed. 70, 1980.
[10] O primeiro crime bíblico é entre dois irmãos, as tragédias segundo Aristóteles ocorrem entre elementos da mesma família, Freud introduz a relação fraterna na Interpretação dos sonhos pela rivalidade.
[11] Foi a passagem do seio materno ao paradigma regido pela lei paterna que Freud teorizou.
[12] Na Wikipedia em francês (Société), uma boa proposta: “em ciências humanas e sociais, a sociedade diz respeito ao conjunto dos usos e dos costumes partilhados por uma população”
[13] O que dá razão a Margaret Thatcher: a sociedade não ‘existe’ fenomenologicamente, como as línguas também não. E como ela só acreditava no que via, a aberração da sua politica em termos sociais é mais fácil de entender. Toda esta gente que se diz ‘neoliberal’ vive nessa cegueira sobre a sociedade.
[14] O que dizia Heraclito vale para ambas estas leis, a da selva como a da guerra: “o polemos (combate) é o pai  de todas as coisas, o rei de todas as coisas” (afor. 53).
[15] Esta questão é exposta longamente no meu e.book Da Natureza à Técnica, da Leya.
[16] Na China, o império sobreviveu através duma rede burocrática de mandarins formados segundo uma sabedoria ininterrupta que durou desde o século III aC até ao início do século XX!
[17] É o que E. Jones, citado no § 32, ignora.
[18] Forma do termo ‘medium’ nas línguas latinas (castelhano, francês), que os brasileiros americanizaram como ‘mídia’!
[19] Esta passagem da igreja à escola só foi possível justamente pela invenção eclesiástica das universidades medievais, a Cristandade tendo sido uma espécie de tecto social da futura Europa, garantia dum espaço contextual comum feito em latim a partir da tradição de saberes greco-romanos, mormente a filosofia e o direito.
[20] Outra confirmação pode ser encontrada pela verificação de como muitos dos motivos filosóficos que foram discutidos a partir da tradição grega e latina medieval esmaltam os textos de todo o tipo de reuniões e conselhos, de todas as burocracias: bastaria retirar esses motivos de qualquer discurso contemporâneo para ele se esburacar e perder o sentido.
[21] Lenoble, Esquisse d'une histoire de l'idée de nature, Albin Michel, 1969, p. 312. O que dá para perceber que os Gregos não tenham chegado à ciência experimental.
[22] O milagre da Europa, Gradiva: por volta de 1400, a Europa estaria em equivalência de situação técnica civilizacional com a China, a Índia e a Turquia islâmica.
[23] A outra vertente do marxismo, contrária ao ‘revisionismo’ social democrata.
[24] No blogue Filosofia mais Ciências 2, datado de 15/10/2011
[25] Aberta às descobertas e invenções hodiernas, estes saberes foram globalizados além das fronteiras ocidentais numa mútua fecundação por ora incipiente.
[26] Incluindo os filmes que ensinam as vigarices e piratarias armadas de que nos queixamos terem aumentado nas nossas metrópoles, nomeadamente americanas, e nos ditos ‘terroristas’, que também aí aprendem
[27] Um livro de Luc Boltanski e Ève Costello, Le nouvel esprit du capita­lisme (Gallimard, 1999), mostra como a gestão de empresas aligeirou como efeito de 68 a organização hierárquica.
[28] Já que os Estados ricos são aliados das ‘suas’ multinacionais contra as dos outros, os Estados pobres fazem-se concorrência uns aos outros para os receber : garantir menores salários e impostos, evitar sindicatos, convenções e greves, cargas sociais, protecção do ambiente, dever de indemnização no caso de se irem embora, etc. É esta guerra que está a desmantelar o modelo social europeu.
[29] http://filosofiamaisciencias2.blogspot.pt/2011/10/economia-politica-por-vir-enquanto.html   http://filosofiamaisciencias2.blogspot.pt/2012/11/a-questao-da-especulacao-financeira.html
[30] É o que reclama Derrida como Nova Internacional em Spectres de Marx (Galilée, 1993).
[31] F. Belo, Linguagem e Filosofia. Algumas questões para hoje (INCM, 1987), cap. VII
[32] Não à maneira das 35 horas para todos de L. Jospin.
[33] ‘Fazer’ de quem sabe e não ‘pedir’ de consumidor.