quarta-feira, 18 de abril de 2018

FILOSOFIA COM CIÊNCIAS recuperar a dimensão filosófica das ciências, suspensa por Kant



[01. Este texto foi redigido em resposta a um ‘call for papers’ da Revista Portuguesa de Filosofia, da Faculdade de Filosofia de Braga, para um número sobre Filosofia e Ciência (recordo com gratidão que, em tempos de João Vila-Chã director, este me convidou para escrever um texto para o número sobre A herança de Heidegger, que está neste mesmo blogue). Aqui procurei expor com cuidado uma visão de conjunto da minha proposta fenomenológica. Os dois árbitros a quem ele foi submetido acharam o texto “confuso” e a revista recusou publicá-lo. Obviamente que a ‘confusão’ depende de, como o próprio título assinala na sua invulgaridade, se tratar dum novo paradigma, relevando da desconstrução pela gramatologia derridiana, e de os peritos, competentes no “paradigma normal” (Kuhn) – hoje em filosofia das ciências, maioritariamente ‘analítico’ – não compreenderem a argumentação. Sempre pensei que este par de árbitros é um mecanismo normalizador, evitando textos realmente inéditos, ‘revoluções paradigmáticas’.
02. Uma maneira de dizer a diferença de paradigmas: enquanto que, desde Platão, se argumenta sobre ‘categorias’, ‘essências’, ‘conceitos’, temas resultantes da definição, a gramatologia tem antes demais em conta o gesto de escrita que isolou esses temas, retirando-os do respectivo contexto, a saber, a operação de definição filosófica e o laboratório científico, gestos históricos da escrita dos textos que impõem fronteiras aos temas filosóficos e científicos que eles tratam, sobre os quais argumentam. É numa paisagem totalmente modificada que os gestos das várias ciências se dão a uma leitura filosófica que termina com a suspensão kantiana e permitem perceber, tendo em conta o contexto fora do laboratório, os duplos laços dos fenómenos de que elas se ocupam, entre fenómenos expostos e (não-)fenómenos, retirados. Mas há que acrescentar que nos dois casos, um de Biologia outro de Física, em que cientistas reagiram a textos meus, também não entenderam a argumentação. Como, por outro lado, não são legião os fenomenólogos gramatologistas conhecedores minimamente dos cinco paradigmas científicos e dada a minha provecta idade, não posso ter nenhuma esperança de reconhecimento desta proposta.
03. Exemplos de ‘gestos’ em filosofia: o ‘sei que nada sei’ socrático e a dúvida metódica cartesiana; com a definição, a instituição da Academia e do Liceu; a Physica como filosofia com ciências; o plurilinguismo helenista, donde o motivo do ‘signo’, abrindo uma brecha no ‘mesmo’ de Parménides, que tinha continuado em Platão e Aristóteles; a maneira como o platonismo se apoderou do discurso cristão em Orígenes; a teologia cristão levando no seu bojo a filosofia para a Europa; a recepção dela pelas universidades medievais; Aristóteles substitui Platão no tomismo; transformação nominalista; papel de Newton na critica de Kant; a redução husserliana e a doação com retiro heideggeriana; a questão da escrita posta à filosofia por um herdeiro de ambos, permitindo entender não apenas o que os pensadores ‘pensam’ (logocentrismo), mas também o que eles ‘fazem’ escrevendo historicamente (desconstrução). Neste mesmo blogue, o Manifesto é uma visão de conjunto da proposta.
04. A primeira vez que esta dificuldade se me apresentou institucionalmente foi na minha tese de doutoramento sobre a epistemologia da semântica saussuriana, editada pela Gulbenkian, que o arguente Vítor Manuel Aguiar e Silva, professor de Teoria da Literatura na Universidade do Minho, me disse ter sido “uma honra” tê-la arguido. Dito de forma sucinta, ela resolvia, com argumentação gramato­lógica, a discussão em torno do signo que dominou o estruturalismo nos anos 60 e que ficara sem solução: foi esta tese que despoletou esta “filosofia com ciências”. Ora, o filósofo e meu amigo Fernando Gil, que fez parte do júri, explicou ao prof. Lindley Cintra que o convidara que não conseguia argui-la porque não entendia a argumentação. Percebi que nunca poderia ter tido um júri de filósofos: com efeito, sou doutor em Linguística e não em Filosofia, em que apenas tenho como referencial académico o concurso para Professor Associado na Faculdade de Letras, departamento de Filosofia, onde ensinei Filosofia da linguagem durante 28 anos]

O retorno às próprias coisas
As invenções da definição filosófica e do laboratório científico
Ontoteologia (Heidegger) e logocentrismo (Derrida)
Husserl e a redução
Heidegger e a (pro)dução
Derrida e a re(pro)dução
Retornar à ‘realidade’ após o laboratório
Definição de sociedade
O ‘dentro’ construído a partir de ‘fora’
A desconstrução: mesmo e não-idêntico, indissociável e inconciliável
Ousia e duplo laço
Os princípios dos dois tipos de matéria: o átomo e a célula
Os duplos laços compostos
A cena do conhecimento: tribal e cosmopolita
A liberdade como enigma
Bibliografia



O retorno às próprias coisas
 1. O “retorno às próprias coisas” foi o sonho que Husserl não conseguiu realizar mas que a obra de Heidegger – o “ser no mundo” (1927)[1] e a “doação retirada de tempo e ser pelo Ereignis” (1962)[2] – e a de Derrida – a gramatologia (1967)[3] e os “duplos laços” (1974[4], 1980[5]) – tornaram possível um século mais tarde, tendo em conta as grandes descobertas científicas entretanto ocorridas. Houve com efeito um equívoco em Husserl, pretender volver aos fenómenos por um lado e considerar por outro como ciências aliadas a matemática e a lógica que, não carecendo de laboratório, não têm relação às coisas; esse equívoco manifesta-se no tipo de exemplos de percepção de inertes de que partem as suas análises, ignorando que faz parte intrínseca das ‘coisas’, ou fenómenos, o seu movimento, o seu tempo além do seu lugar no espaço; não admira assim que na sua Origem da geometria[6] seja o iniciador da física moderna, Galileu, quem perturba a linearidade da sua leitura da história da geometria, o laboratório seria o obstáculo. A dissidência de Heidegger recuperou o tempo para os humanos e as mãos também, que cuidam das coisas, colocando-os como seres no mundo de todos os dias, donde a definição filosófica e a ‘alma’ de outrora os tinham desalojado. Voltou todavia as costas às ciências, também para ele teria sido o obstáculo o laboratório – “a ciência não pensa” significa ‘o laboratório mede e calcula’ –, laboratório que se acrescentara no século XVII à antiga definição grega; no final da sua vida, colocou a doação retirada de “tempo e ser” às coisas pelo Ereignis. Dissidente de Heidegger por sua vez, Derrida retomou a redução fenomenológica de Husserl para permitir que a escrita, enquanto inscrição e trabalho, motivos ignorados da filosofia tradicional, esclarecesse o jogo de diferenças da linguística saussuriana como 1) espaçamento-temporalização, quer dos textos, quer das coisas e dos vivos e 2) relação estrutural ao Outro social, donde vem 3) a inscrição que ensina a falar, a célebre e incompreendida precedência da escrita como origem da fala. Embora não fosse aí que situava os seus interesses, a sua gramatologia tornou possível o retorno às coisas, tal como as dizemos e pensamos, assim como a reconsideração das ciências sociais e humanas, com o que elas comportam de experimentação (arquivos, estatísticas), mormente quando recolheu do psicólogo americano G. Bateson o motivo de duplo laço para esclarecer gramatologicamente certos textos de Hegel[7] e de Freud[8]. Foi esse motivo, que ele usou sobretudo em textos de preocupação ética e política dos anos 80 e 90, que veio a revelar a fecundidade inestimável da sua gramatologia para reformular a fenomenologia como campo dos fenómenos de que se ocupam as ciências: colocar num certo vis a vis as cinco principais descobertas científicas do século XX, discernindo os respectivos “duplos laços” como retorno ao movimento das coisas[9]. A saber: : a teoria do átomo e da molécula, a biologia molecular, as “estruturas elementares do parentesco” como teoria do social de Lévi-Strauss[10], a “dupla articulação da linguagem” de Saussure[11] e Martinet[12] e a teoria psicanalítica das pulsões. Com uma vantagem, apreciável nesta época de relativismos e de fragmentação do conhecimento, a desta reformulação ser uma articulação sistemática dos saberes, em que cada ente, mesmo os inertes mas mormente os vivos, são estruturalmente indeterminados, o que nos humanos chega ao que se pode chamar o enigma estrutural de cada um, a sua liberdade.

As invenções da definição filosófica e do laboratório científico
2. Há dois momentos de viragem no pensamento greco-europeu, os das invenções da definição filosófica pela escola socrática e do laboratório científico no sec. XVII. É inerente a ambas o gesto de retirar o fenómeno a ser estudado do seu contexto particular, buscando ou essências filosóficas ou leis científicas referentes ao que é assim isolado. Inventada por Sócrates, a definição forneceu os Eidê (formas ideais) celestes de Platão (Parménides 135c, Metafísica 1078b18-3) de que as coisas terrestres são cópias. Foi todavia Aristóteles quem generalizou o uso da definição, a sua crítica do platonismo sendo um primeiro “retorno às coisas” ao definir a ousia delas – nas Categorias[13], a “primeira” (‘substância’, em latim) coincidindo com a “segunda” (‘essência’, em latim) – que permite conhecer o seu movimento, mormente aquele que é o mais surpreendente, o dos vivos que crescem, se alteram e deslocam por si próprios (kath’autôn). Categoria primacial da Physica[14], que foi a primeira ‘filosofia com ciências’: com efeito, a ousia é a operadora definitória em As partes dos animais[15], Sobre a geração e a corrupção[16], Da alma[17], além doutros, e ainda na Poética[18]. Foi a tradução em latim dos dois sentidos de ousia que tornou possível a querela nominalista que os separou para a Europa, a ‘substância’ deixada às coisas individuais, a ‘essência’ retida apenas nos “nomes” mentais, abrindo o espaço do dualismo europeu ideias / coisas em que foi possível a invenção do laboratório científico que veio desfazer vinte séculos mais tarde a ‘filosofia com ciências’ aristotélica, ao introduzir no conhecimento gnosiológico o ‘labor’ que, em contraste com a vida, produz e mede movimentos a que as coisas inertes podem ser sujeitas: é assim que Galileu introduz o tempo na geometria e Newton lhe acrescenta a mecânica das forças. Que ao seu grande tratado de Física, aliando a geometria e a mecânica, Newton tenha dado o título de Princípios matemáticos de filosofia natural[19], o cientista reclamando-se como filósofo, eis o que não será possível após o newtoniano Kant ter deduzido da ruptura da relação aristotélica a separação entre os conceitos do entendimento para as ciências (em seus juízos sintéticos a priori) e as ideias da razão pura (sem apoio da experiência) para a filosofia, permitindo àquelas autonomizarem-se nos dois séculos que se seguiram. É esta epochê da dimensão filosófica das ciências que parece hoje esgotada, tão vasto é o actual panorama da diversidade das ciências e das suas inúmeras regiões e especialidades, perdida a unidade do saber que os nossos antepassados tanto tinham saboreado e hoje nos falta de forma lancinante. É do que vai ser questão aqui.

Ontoteologia (Heidegger) e logocentrismo (Derrida)
3. O retorno de Heidegger aos pensadores de antes da definição, que detestava que fossem chamados pré-socráticos, a sua busca de compreensão filosófica de palavras históricas dos textos gregos e do alemão medieval, permitiu-lhe uma interpretação da história do Ser (continuação do seu Ser e Tempo[20]) que ele como que resumiu no motivo de ontoteologia, cujo primeiro gesto se encontra na relação platónica entre os Eidê celestes e as coisas correspondentes, gesto que o cristianismo de Orígenes de Alexandria e de Agostinho de Hipona reforçará com a relação Criador / criatura, ser celeste / ente terrestre[21]. Mas talvez se possa pensar um alcance subversivo neste motivo heideggeriano, dele não ter apenas visado o discurso teológico e o Deus filosófico, as “ideias inatas” cartesianas e as “mónadas” leibnizianas, mas a ontoteologia ter-se mantido como estrutura metafísica do par pós-teológico sujeito / objecto e a sua ignorância do movimento, da história e do mundo, ou seja, do contexto a que a definição arrancara os definidos. A ontoteologia – primado do ser do ente como essência intemporal, sem contexto nem origem dos entes particulares – será então filha metafísica da definição: é abandonando-as que se afirma o ser no mundo. Mas ao negar o pensamento ao laboratório, Heidegger não se deu conta de que este des-substancializara os fenómenos que media, como se dirá adiante (§ 12), de que se pode restituir aí o gesto des-ontoteológico que ele herdará indirectamente. E se ele não deu por isso, foi por ter ficado ainda sujeito ao diagnóstico feito por sua vez por Derrida da história dos textos ocidentais: o que chamou logocentrismo resulta da ‘auto-evidência’ de quem pensa a respeito dos ‘seus’ pensamentos à maneira cartesiana, coincidência do pensamento e da voz calada na intimidade, esta privilegiada como o mais precioso bem, que esteve na base das invocações da divindade, da inspiração, da inteligível inteligência, da consciência de si; o logos – seja pensamento da alma consigo mesma, seja discurso em voz alta (Sofista 263e), gerado pela alma do que pensa (Teeteto 150c-d) – é pensado como o centro que organiza conscienciosamente os textos, na ignorância do trabalho de escrita que os tece (textil) pelo jogo de diferenças linguísticas e não só, pois que jogo eminentemente social. E sobretudo ignora que é esse jogo vindo do ‘exterior’, aprendido e incessantemente repetido, que tece o próprio logos na sua ‘interioridade’. À diferença de Heidegger, Derrida que, além dos dois mestres alemães, também herda de Marx, de Freud, de Nietzsche, de Saussure, de Blanchot, de várias ciências sociais e de numerosos textos literários, Derrida, cujos textos são sempre trabalho minucioso de leitura de outros pensadores, sabe que, desde a importância da geometria na Academia de Platão, sempre a ciência – figuras e caracteres de tipo matemático nomeadamente[22] – impediu a filosofia de ser radicalmente logocêntrica. Esquadrinhador das oposições mais subtis, ele nunca opôs filosofia e ciências, como hoje (quase) toda a gente faz, ao invés de Newton. Há um paradoxo nestes dois diagnósticos: sem definições para construir as suas teorias, isto é, sem ontoteologia nem logocentrismo, não haveria ciência, mas esta resistiu-lhes, abrindo a desconstrução, quer de uma, quer do outro.

Husserl e a redução
4. Tentemos mostrar com exemplos simples de fenomenologia e ciência, tanto quanto um leigo o pode fazer, a nova relação de ‘filosofia com ciências’, partindo de Husserl que refaz o retorno às próprias coisas que fora já o de Aristóteles, crítico das Formas ideais de Platão, trazendo estas como ‘essências’ às ‘substâncias’ respectivas: a redução repete o gesto da definição, arrancar o ente ao seu contexto, fazendo dele objecto, e compará-lo com outros do mesmo eidos que pode assim ser definido (é a crítica que Heidegger fará: o ‘objecto’ percepcionado é apofântico, resulta duma abs-tracção do seu ‘mundo’). Mas ao fazê-lo, e à diferença de Kant, a intencionalidade da consciência na coisa percebida implica que ele abandone o laboratório em que a filosofia europeia se tinha alojado, regressando à maneira grega de filosofar; fenomenólogo, ele reflecte sobre o seu gesto e exibe a descontextualização que a definição opera, tem em conta a tradição substancialista europeia sobre o objecto (res extensa) e sobre o sujeito (res cogitans): a intencionalidade é a suspensão da consciência como substância, ela não ser senão a coisa intencionada, assim como também suspende, reduz a coisa aparecendo para não reter senão a sua fenomenalidade, o seu aparecer estrutural, comum a outras coisas do mesmo eidos (final § 20). A sua descoberta essencial, a diferença entre a empiricidade aparecendo reduzida e o aparecer fenomenal retido, é a diferença fenomenológica, por exemplo, entre o redondo duma roda ou dum prato e a circunferência geométrica. Que não é já a diferença entre a ‘substância’ e a ‘essência’ aristotélicas, de vivos entre dunamis e energeia; os seus objectos percepcionados são de substâncias inertes, nem moscas nem cavalos, tal como a física de Newton que os media mas deles só retinha as medidas, não as ‘qualidades’. Esta des-substancialização dos físicos que Kant retomou e agora Husserl, tem o nome heideggeriano de desontologização: inerente à intencionalidade e à redução, ela é característica da fenomenologia husserliana, como o será do pensamento de Heidegger e de Derrida, que vão todavia além dela.

Heidegger e a (pro)dução
5. Pode-se dizer que Heidegger prossegue o caminho da intencionalidade husserliana mas, em vez de o inverter para a idealidade constituída pela consciência transcendental, prossegue para o Ser, para o que, do lado do contexto do objecto dado, o dava mas permanecia retirado do olhar fenomenológico. Este é questionado, abandonada a essencialidade do seu sujeito que é temporalizado, ser no mundo, na sua existência pro-jectada nas suas possibilidades, Dasein pondo a questão do sentido do seu ser. O II Heidegger vai mais além do contexto em que são dados os entes, busca a historicidade do Ser que os furtando-se, doação retirada fenomenologicamente. Deixa cair a redução para retomar o que a tinha pedido, suspendendo a preocupação husserliana das idealidades e das ciências, vem agora aquém da definição, ao cuidado quotidiano da habitação, à linguagem onde se põe a questão do ser, à temporalidade que a definição suspendera, à mortalidade ou finitude reduzida pela alma platónica e cristã. A desontologização, retorno a Parménides, visa agora a historicidade substancial do Ser, que é o mesmo que o dizer e o pensar, não é pois ‘ente’, mas Nada de ser que dá os entes, diferença ontológica. Esta opera, como redução, a destruição da Metafísica (da oposição entre o inteligível e o sensível), da Ontoteologia desligando substância e ser, a relação do Criador à criatura (rebatida pelos Europeus sobre o par sujeito / objecto) que desvaloriza o contexto histórico e privilegia o ‘presente’[23]. O passo que Heidegger não deu seria o do ser no mundo humano  ser dado nas economias da alimentação (biologia) e da aprendizagem (neurologia), a sua ‘interioridade’ dada pela ‘exterioridade’ do mundo em que o Dasein é (antropologia). Resumamos este passo: lendo a Physica de Aristóteles, o pensador sublinha o poder (archê) doador da phusis de pro-dução, dum fruto, por exemplo – de guiar (-dução) avante (pro-) –, isto é, o poder de o fazer vir à presença; o motivo do retiro, lido em Heraclito (§ 123), será o índice da redução des-substancializante: a retracção desse poder enquanto deixar vir à presença. Pode-se grafar (pro)dução: o ‘fazer’ como ‘pro’ e o ‘deixar’ nos parênteses que o escondem.
6. Na conferência Ser e tempo de 1962[24], Heidegger substitui o Ser por Ereignis (‘acontecimento’ em alemão), o qual agora faz doação aos entes e lhes deixa ser e tempo, colocados enfim estes dois como par, como também sugere que ambos sejam essenciais no motivo de ‘acontecimento’, que permite reler a fórmula da diferença ontológica do Ereignis como Nada de acontecimento dá e deixa ser os acontecimentos. Com efeito, na dita realidade, só há acontecimentos, tudo no ente – nascimento, alimento, morte, fabrico, utilização, estrago – releva deles, incluindo o grau zero da rotina, tudo o que o faz ele próprio, no seu indeterminismo temporal. Ora, pode-se mostrar com o exemplo simples dum cavalo como há simultaneamente retorno a Aristóteles e a sua ultrapassagem. A sua ousia é o movimento da substância que é ‘este’ cavalo (ousia primeira) vindo à presença, movimento esse que é o ‘mesmo’ do que o dos outros cavalos e éguas da mesma essência (ousia segunda), mas este movimento, durante toda a sua vida de cavalo, do nascimento à morte, é vivido de maneira singular, ‘própria’, diferente dos outros cavalos, segundo os seus acidentes, os seus acontecimentos ônticos, excluídos da essência, como ‘presença’ intemporal privilegiada sobre o tempo dos acidentes. No Ereignis, o movimento é a ousia dada, ser e tempo dados duma vez (a palavra ‘vez’ designando um acontecimento, ‘era uma vez’), movimento ôntico, particular, este cavalo que acaba de nascer da sua égua materna, de ser (pro)duzido, vindo à presença e que no tempo crescerá, comerá e dormirá, se reproduzirá. Nada disto é ‘acidental’ no sentido de secundário, derivado, mas é essencial ao acontecimento ôntico, à existência singular deste cavalo: desapareceu a diferença primeira / segunda da ousia (como já acontecera para o Dasein em Ser e tempo[25]). E o que é o acontecimento ontológico? É a espécie cavalar que dá o cavalo e outros cavalos e éguas. Uma espécie biológica não é nenhum dos seus indivíduos (não sendo ‘nada’ sem eles), já que eles nascem e morrem e a espécie continua a reproduzir-se nos seus descendentes. Não é nenhum ‘ente’, é ‘Nada’ que tem a fecundidade, o poder de doação dissimulado de se reproduzir como o Mesmo em entes individuais diferentes, nunca ‘idênticos’ entre si, Nada de acontecimento que dá potros, cavalos e éguas em suas temporalidades. Ousia deixou de ter oposição hierárquica a acidentes, já que as regras biológicas são relativas ao aleatório das vidas animais. Como ‘acontecimento’ e ‘acidente’, um com conotação positiva e o outro negativa, têm o mesmo sentido de algo de inesperado que implica vários, vê-se como Heidegger retorna ao aristotelismo para o transformar: a oposição entre ser e tempo foi enfim ultrapassada. Provavelmente sem dar por isso, permitiu assim chegar às coisas e às ciências que delas se ocupam, a cujo laboratório tinha virado as costas. A diferença ontológica (entre os animais empíricos e a sua espécie) é próxima da fenomenológica (entre rodas e circunferências) – introduziu nela o tempo –, a ‘espécie’, ‘constituída’, pode-se dizer, pelo saber dos que se ocupam dos animais, sendo mais adequada ao que se mexe do que a percepção husserliana. Mas não deixou de ter limites, não esclarece porque é que um cavalo é vivo, como não foi capaz, em Ser e Tempo, de desenvolver a relação ao outro, o Mitsein.

Derrida e a re(pro)dução
7. Trata-se agora de ver como Derrida é o dissidente destes dois pensadores alemães, retomando a temporalidade do Ereignis para a introduzir na redução, na operação da diferença fenomenológica, ao recorrer a ela para aclarar a diferença saussuriana entre os sons empíricos (que, por exemplo meu, uma criança in-fans ouve) e as diferenças entre esses sons, não substanciais, o “significante” da língua. Que “é o ouvido [l’entendu]: não o som ouvido mas o ser-ouvido do som. O ser-ouvido é estruturalmente fenomenal e pertence a uma ordem radicalmente heterogénea à do som real no mundo. Não se pode recortar [découper] esta heterogeneidade subtil mas absolutamente decisiva senão por uma redução fenomenológica”[26]. Os ‘sons’ são o que se ouve, o que ‘aparece’ (ao ouvido, não ao olhar, no caso; não será por acaso esta diferença de órgãos perceptivos nas duas filosofias), enquanto que os ‘significantes’ são as diferenças entre os sons, o ser-ouvido deles, o seu ‘aparecer’, ou seja a língua de Saussure que é indissociável da fala (parole)[27]. Como é que a criança aprende a falar a partir destes sons ouvidos? Retendo as suas diferenças, enquanto que os sons dos outros, dos doadores da fala, se retiram, reduzidos, a fim de que uma voz inédita seja (pro)duzida, em seu ‘ser e tempo’. A “diferença” (fenomenológica) torna-se “différance” (gramatológica), não apenas ‘espacial’ mas espácio-temporal, como diz o a mudo do diferir que ‘adia’, que também reenvia para o outro, o que foi ouvido, para a alteridade, comunicação e conflito. Este “movimento” do jogo de diferenças, do que fala para o que escuta, suscitando voz, é uma ex-pressão do que fala, uma escrita gerando uma im-pressão no que escuta: a escrita, diz Derrida, como origem da fala. Esta différance ou rasto (trace) sintetiza a redução e a (pro)dução: re(pro)dução. O enigma desta aprendizagem é que não se trata de duas operações mas duma apenas com duplo efeito, pois que não se podem distinguir dois momentos, um husserliano e outro heideggeriano: o apagamento (que des-substancializa os sons ouvidos) que deixa ser a nova fala (pro)duzida (voz-discurso) é o efeito da redução. Ora, se privilegiei a aprendizagem neste processo, o que Derrida não explicita, tenho que acrescentar que o processo se efectua constantemente em todas as falas ouvidas e em todas as escritas lidas, justificando a noção de que ganhamos experiência a vida toda, aprendemos sempre mais saber.
8. O que é surpreendente, e já este exemplo da aprendizagem o mostra, por isso o acrescentei, é que este motivo da re(pro)dução seja mais do que uma operação de pensamento fenomenológico, se revele ser uma verdadeira operação ôntica, se se pode dizer, que opera constantemente na chamada realidade: no exemplo da biologia, corresponde à operação celular da reprodução dos cavalos além da morte dos seus progenitores. Seja a divisão do “pro-grama[28] genético” nos cromossomas celulares em gâmetas com metade dos genes, um fêmea a que um macho se vem unir para formar o programa genético dum novo vivo, diferente de cada um dos progenitores, de cujos rastos é constituído: desde que este novo ADN do ovo comece a regular a síntese das proteínas, pode-se dizer que foram apagados, reduzidos, aqueles de que é o rasto. Ora, o que é esta divisão do programa genético? É primeiro a redução da metade dos genes nos progenitores para formar os gâmetas sexuais, a redução dum ‘mesmo’ em vista da sua repetição numa ‘substância’ empiricamente outra, numa célula não ‘idêntica’. Em seguida, a (pro)dução duma nova célula, o ovo, é o que resulta da união das duas metades que faz vir á presença (concepção, futuro nascimento) e que a redução dos outros deixa vir à presença. Como na aprendizagem da fala, trata-se duma dupla operação, da différance biológica, do pro-grama genético, em que a (pro)dução heideggeriana só é possível pela redução husserliana: esta dupla operação ôntica é a reprodução celular. O que os filósofos pensaram a nível fenomenológico (com redução do empírico do ‘ôntico’) ou ontológico diferente do ôntico, revela-se simultaneamente nas duas faces, a da escrita gramatológica e a do processo ôntico da biologia. Grafando re(pro)dução, marca-se fora dos parênteses o que releva de Husserl e a simultaneidade do fazer / deixar vir à presença de Heidegger no ‘pro’ e nos parênteses que o escondem. Poder-se-ia mostrar como a transcrição do ADN no ARNm e a tradução deste na estrutura da proteína sintetizada obedecem ao mesmo processo (§12), sempre as mesmas diferenças passando duma ‘substância’ empírica a outra, reduzindo a primeira e (pro)duzindo a segunda. Consegue-se assim explicitar a intenção manifestada por Derrida desde 1967, de que o seu motivo da trace (rasto) seja referido ao campo científico da biologia[29].

 Retornar à ‘realidade’ após o laboratório
9. Permanece algo de Kant: o filósofo, porque não mede, é leigo em relação ao laboratório científico, só se pode ocupar do que a teoria do paradigma tem de ‘filosófico’ assim como dos gestos do cientista: retirar o fenómeno do seu contexto e restituí-lo após a análise. Acontece que as filosofias das ciências actuais parece não terem reflectido sobre este duplo gesto e portanto sobre as razões pelas quais o laboratório lhes é necessário[30] (Belo, 2/12/2013): ele cria condições de análise duma determinada dimensão e suspende outras possibilidades de causa e efeito a jogarem na complexidade do contexto, donde que haja em seguida que saber apreciar as incidências do retorno fora do laboratório das suas descobertas laboratoriais, tendo em conta também a dimensão fragmentária das suas experiências que há que compor com outras na elaboração teórica. Fora do laboratório é o reino do particular que escapa à ciência, tanto à aristotélica, já que os ‘acidentes’ impedem de conhecer a ‘substância, como à newtoniana[31], que o prudente Kant crismou de “númenos”. É no entanto possível usar o que se aprendeu no laboratório para saber algo de geral – filosofia com ciências – sobre essa ‘realidade’ exterior a ele. Por exemplo, a lei que resulta da bioquímica das moléculas celulares (excepto as de água) serem compostas à base de átomos de carbono e da sua aquisição pelo mecanismo da alimentação, supõe a fotossíntese em que as plantas recebem do anidrido carbónico (CO2) atmosférico o açúcar glicose (C6H12O6) que tem esses átomos; em seguida, os herbívoros alimentam-se de plantas para terem acesso a essas moléculas preciosas que no fim os carnívoros vão ter comendo herbívoros. Pode-se chamar a este ciclo biológico do carbono[32] lei da selva, verificando-se que as anatomias das espécies animais com e sem vértebras, bem diferentes entre si, são todas determinadas por essa lei que os biólogos parecem ignorar[33] mas que interessa ao fenomenólogo que encontra aí, nos músculos dos combates de predação e nas astúcias para os vencer ou lhes escapar, a origem do problema da violência e do mal, que faz parte da herança que os humanos recebemos da evolução teorizada por Darwin.

Definição de sociedade
10. Para apreciarmos essa herança, sublinhe-se a contribuição notável das Estruturas elementares do parentesco de Lévi-Strauss[34] para a teoria de sociedade, relacionando o interdito do incesto, universal de todas as sociedades humanas, com a exogamia, a troca de mulheres entre linhagens diferentes em alianças entre elas que são a rede elementar constitutiva das sociedades[35], apesar das grandes diferenças entre as lógicas da estruturação dos sistemas de parentescos. Sem dúvida que a complexidade das sociedades contemporâneas é um tremendo desafio para as ciências das sociedades entenderem os seus laços, mas o fenomenólogo pode desconfiar de que a maneira como desde os séculos clássicos se pensou o social pelo “contrato” entre indivíduos possa ter algo a ver com a dificuldade de se encontrar uma definição geral de sociedade[36]. Pode-se pôr a questão assim: se passados uns 50 anos, a população dum país não é a mesma devido às mortes e nascimentos ocorridos entretanto, como é que se pode pretender que é a mesma sociedade? A resposta pode passar por uma outra questão simples: como é que a população de há 50 anos respondeu a essa pergunta? Preocupando-se extremamente – e isto é verdade de todas as sociedades conhecidas, qualquer que seja a sua complexidade – em que as crianças nascidas aprendam os usos dela, de maneira a que a sociedade possa reproduzir-se como até aí. Então o que se pode chamar o paradigma da unidade social (família, emprego), o sistema de usos que se repetem, segundo calendários variáveis, alicerçados na garantia da alimentação quotidiana e do repouso nocturno e respectiva defesa, será esse sistema de usos incluindo a linguagem que define sociedade. A vantagem desta definição é que a noção de ‘uso’ – que inclui o que o usa, ao contrário da de ‘acção’ (ou ‘prática’, ‘comportamento’), que supõe um ‘sujeito’ que lhe é exterior, que ela não altera – implica a de aprendizagem que transforma o ‘sujeito’, o faz passar do não-saber ao saber-fazer espontâneo mais ou menos hábil. Então, a força muscular e a astúcia (final do § 8) vão poder sobrepor-se à aliança e criar rivalidades, em ordem a ser-se reconhecido como o melhor, o mais forte ou hábil, a conquistar o primeiro lugar, e por aí fora. Esta rivalidade parece também ela ser uma espécie de universal humano, desde o nível da família[37] e do bairro ao das tribos e nações, à concorrência económica e à organização desportiva, ser a raiz do que se pode chamar a lei da guerra, que se sobrepõe à das alianças e trocas e que religiões, direito e razão buscam controlar.

O ‘dentro’ construído a partir de ‘fora’
11. Se os respectivos cientistas não dão o passo que interessa sobremaneira ao fenomenólogo, o da complexidade da dita realidade extra-laboratorial que o laboratório permite conhecer, deixam também o campo livre para a compreensão das articulações das várias ciências para o entendimento do fenómeno humano: a biologia fornece a questão da alimentação e o primado da fome como problema social, a antropologia a da sexualidade como excesso a ser contido no coração do social desde o interdito do incesto, e ainda a da aprendizagem como o mecanismo social por excelência e a disciplina das pulsões anárquicas que ele implica. Ora, quer o mecanismo da alimentação quer o da aprendizagem têm como finalidade criar regras de autonomia, orgânica a primeira, pessoal-social a segunda, que são susceptíveis de serem iluminadas pelo pensamento heideggeriano de ser no mundo, que permite compreender que essas regras de autonomia são doadas pela cena social enquanto heteronomia cuja dissimulação deixa ser a autonomia. A alimentação tem como consequência que todas as moléculas do nosso organismo foram antes moléculas de plantas ou doutros animais e o programa genético é, por assim dizer, o que faz o guião fisiológico dos diversos órgãos; a aprendizagem faz essa coisa corriqueira de grande espanto que é passar de não saber um uso a um saber espontâneo e hábil dele, que até se pode o usar quase sem lhe prestar atenção, o que recebe esse saber exterior sendo os neurónios que vão ganhando sinapses ao aprender. Coisa de grande espanto: que a nossa preciosa acima de tudo ‘interioridade’ seja incessantemente doada pela cena ‘exterior’, eis algo a que o próprio Heidegger não acedeu, que diz bem o alcance da revolução filosófica que se deve à gramatologia de Derrida, o grande alcance do motivo da différance como jogo, “unidade do acaso e da necessidade num cálculo sem fim”[38] : por exemplo, que todo o movimento supõe regras em situação aleatória.

A desconstrução: mesmo e não-idêntico, indissociável e inconciliável
12. Com efeito, o que está em jogo nestas questões é o que o pensador francês chamou desconstrução. Trata-se de clarificar as grandes oposições metafísicas do pensamento ocidental, buscar um movimento que lhes seja prévio e que permita entender o como e o porquê dessas oposições. Se atendermos ao que fizeram os físicos do sec XVII, verificamos por exemplo que Galileu mediu o tempo na experiência do plano inclinado com água escorrendo durante o movimento e depois pesando-a, explicando que o que contava eram “as diferenças e proporções”[39], que meçamos segundos ou gramas de água pouco importa. Como Newton, a deixar de fora a “qualidade”, isto é a substância, para reter apenas a “quantidade”, isto é, as medidas cujos resultados são as variáveis das equações físicas. A experimentação laboratorial em física consiste na medição de movimentos de coisas, nas diferenças matemáticas operadas, quaisquer que sejam as ‘substâncias’, que eram o cerne da ousia na Physica de Aristóteles. Mas estas ‘diferenças’ são indissociáveis dos movimentos e a fortiori das ‘substâncias’ que se movem, o saber físico é desconstrutivo, aplicando-se também a “massas” e a “forças”, permitindo vir à teoria do átomo e da molécula como constitutivos últimos das coisas substanciais, sem nunca saber da ‘substância’, como se esta tivesse como único papel o ser a objecção (do dito objecto) a esse mesmo saber (do dito sujeito). Atendendo agora à economia celular, encontramos um jogo de diferenças entre moléculas do ADN que é transcrito tal e qual nas moléculas do ARNm, o qual por sua vez será igualmente traduzido nas moléculas da proteína sintetizada: o jogo de diferenças entre substâncias moleculares é sempre o mesmo, as substâncias moleculares empíricas é que são outras, nos três casos indissociáveis do jogo de diferenças. Aqui foram decisivas as descobertas de F. Jacob[40] e de J. Monod[41]. Este par indissociável das mesmas diferenças e das respectivas substâncias moleculares corresponde ao par espécie / indivíduo: a mesma espécie em indivíduos não-idênticos. O paradigma dos usos que cada indígena aprende, uma parte deles comuns, outros especializados, é igualmente um jogo de receitas que a linguagem diz e que são as mesmas para cada uso, que transforma cada um em sua substância individual; sendo indissociáveis, a receita do uso e o seu exercício caso por caso, o que corresponde ao par sociedade / indivíduo: aqui é a mesma sociedade em indivíduos não-idênticos.
13. A linguagem põe problemas, por assim dizer, mais específicos à filosofia que, desde que saída da Grécia clássica monolinguística para o helenismo plurilinguístico, não se entendeu mais com ela. É que, duplamente articulada, a linguagem tem dois níveis de diferenças: dos sons elementares de cada voz (fonemas, letras) articulados em palavras, fazendo o par significante (fonema) / som da voz individual, aonde se está ao nível do uso social aprendido; das palavras articuladas nas frases do discurso, fazendo o par significante (palavra) / sentido, ao nível do pensamento individual. Ambos os pares são indissociáveis, entre diferenças e as respectivas ‘substâncias’ sonoras (embora o ‘som’ não seja propriamente uma ‘substância’), ambos relevam do par linguístico língua / fala, a mesma língua em falas não-idênticas, seja nas vozes de indivíduos diversos, seja nos discursos (ou textos) do mesmo indivíduo variando as ocasiões. Um teste que diferencia estes dois pares é o da tradução: o par língua / voz é radicalmente substituído pelo par equivalente da língua em que se traduz, enquanto que a fidelidade da tradução é a de procurar em palavras e outras regras linguísticas diferentes restituir o mesmo texto, o que é tanto mais difícil quanto o for o carácter poético, literário, do texto. A mesmidade do discurso ou texto é o seu pensamento, o qual é feito das diferenças linguísticas das palavras e frases e portanto das diferenças sonoras ou gráficas, e foi nesse ponto que, por via do debate nominalista, a filosofia europeia privilegiou o pensamento e a razão, subordinando-lhes a língua como ‘instrumento’, como que em eco ao organon aristotélico. Decisão num indecidível, que provinha já da herança de Platão e Aristóteles, da oposição entre o “inteligível” e o “sensível”, aquele sendo proposto como o que não depende deste, justamente o que a linguagem impede, como Derrida mostrou[42] (1972, p. 5): a diferença entre dois sons não é sonora, não é sensível, mas não é senão entre sensíveis.
14. Mas porque é que se forjaram estas oposições, porquê o pensamento de tão grandes pensadores lhes cedeu, porquê a desconstrução é necessária historicamente e tão difícil? Citemos Derrida lendo Freud. “Tocamos aqui no ponto da maior obscuridade, no próprio enigma da différance, no que lhe divide justamente o conceito por uma estranha partilha. Não se deve apressar-se para decidir. Como pensar ao mesmo tempo a différance como desvio económico que, no elemento do mesmo, visa sempre reencontrar o prazer ou a presença diferida por cálculo (consciente ou inconsciente) e por outro lado a différance como relação à presença impossível, como despesa sem reserva, como perca irreparável da presença, usura irreversível da energia, ou até como pulsão de morte e relação ao totalmente outro que interrompe em aparência toda a economia? É evidente – é a própria evidência – que não se pode pensar em conjunto o económico e o não económico, o mesmo e o totalmente outro, etc. Se a différance é este impensável...” [43]. Impensável: a espécie e o indivíduo, a sociedade e o indivíduo, a língua e a fala. Estes pares indissociáveis que encontrámos são de dois parceiros antagónicos, re(pro)duzidos por différance como temporais, isto é, moventes no meio de outros moventes: é a noção mesma de movimento que implica indeterminação na cena onde outros não-idênticos circulam igualmente, ou seja implica autonomia, excesso em relação à mesmidade heteronómica, cujas diferenças doadas são regras, por assim dizer que ‘disciplinam’ os movimentos para que eles sejam autónomos, indeterminados, mas mantendo-se na mesma espécie, sociedade ou língua, consoante. Os pares indissociáveis são inconciliáveis: as autonomias só podem ser se, não-idênticas, objectarem aos outros em geral, à mesmidade doadora que o substancial empírico excede, enquanto capaz por essa mesma doação de movimento alternativo.

Ousia e duplo laço
15. O que foi aqui proposto releva do movimento histórico ocidental que pensou o movimento, entre a Physica e a Física. A primeira propunha o motivo de ousia para compreender o movimento dos vivos, dos que se movem por eles mesmos, crescem e se alteram, e também se deslocam; a segunda limitou-se ao deslocamento como movimento dos inertes porque ele é susceptível de ser medido, mas deixou as ‘coisas’, os fenómenos, nomeadamente os vivos, fora do alcance do seu laboratório. Assim como a ousia aristotélica serviu para organizar o discurso de várias ciências de observação e definição, também a mecânica newtoniana fomentou outros laboratórios com outras maneiras de observar ‘mecânicamente’ os fenómenos vivos e sociais que a Física e a Química não alcançavam. A separação entre ciências exactas (da exactidão que lhes confere a matemática[44] sem a polissemia que é inerente à economia das línguas humanas) e outras ciências (adjectivadas de sociais e humanas com algum pejorativo) manteve-se até hoje como desafio à unidade do saber, que desapareceu com a metafísica. Se é verdade que o que chamamos ciências se ocupa do conhecimento de fenómenos, de operar o que Husserl chamou “retorno às coisas”, e se for certo o que aqui se pretendeu, lendo os dois grandes dissidentes do fenomenólogo alemão, como conjunção entre essas dissidências e algumas das grandes descobertas científicas suas contemporâneas no século passado, poderemos pretender que esta unificação do saber se realiza a um nível fenomenológico, embora fortemente alterado em relação a Husserl já pelas duas dissidências. Propus o motivo de duplo laço que Derrida retomou de Bateson como o que, digamos assim, substitui a ousia da antiga Physica nesta maneira de pensar o movimento: tratar-se-á então, para terminar, de detalhar um pouco esse motivo em confronto com ela.
16. O que sobra à ousia substancial, os acidentes, é o que liga cada uma ao contexto particular aonde tem origem, que lhe dá pois o que podíamos chamar o seu aparato sensível enquanto fenómeno, visível aos olhos, audível aos ouvidos, tacteável pelas mãos. Que ela se altere mudando de eidos e mantendo a mesma hulê, o que justifica que a ousia possa ter sido tratada também na Metafísica, é a vertente substancialista do quarteto, o que foi desconstruído desde Galileu e Newton. Muito mais interessante é o seu outro par, o kinoun que lhe dá movimento e o telos dele, o ‘motor’ e o ‘sentido’ desse movimento, que poderão ser apreciados, pelo menos no caso simples dos deslocamentos, como o dos carros, mas tratando-se dos vivos pedem, não uma archê da phusis, como Heidegger leu no livro da Physica[45] (1968), mas uma extensão além do organismo e da sua pele. Para salientar desde o início o contraste, tomar-se-á um modelo relativamente simples para apresentar o duplo laço, que tem a vantagem de estar no coração das sociedades contemporâneas, o duma máquina, o automóvel a gasolina sendo a que nos é mais familiar. Não sendo viva, o par eidos / hulê desta máquina não implica nenhum movimento de crescimento ou alteração, mas pelo contrário o par motor / sentido é crucial para a caracterizar: o motor consiste nos cilindros onde se faz a explosão do combustível, que têm que ser hermeticamente fechados, inacessíveis em funcionamento a qualquer mão, retirados de todo o resto do carro, daquilo que se pode chamar o aparelho, que contém as peças necessárias à condução na estrada, desde a embraiagem até aos veios das rodas, mais o volante, os lugares de passageiros (ou mercadorias), etc. O conjunto das peças do motor é constituído por um laço, o do aparelho por outro laço: nenhum deles foi inventado sem o outro, só há movimento porque o motor o dá e o aparelho o guia, não são pois dois laços, mas – indissociáveisum duplo laço. Esta unidade é a do fenómeno, da coisa enquanto tal, isto é, enquanto capaz de se mover. Motor e aparelho ligam as respectivas peças segundo leis diferentes e inconciliáveis: a lei da termodinâmica dos gases que rege a explosão no motor (‘retirado’ por isso), a lei do tráfego que rege o aparelho enquanto regulador do sentido do movimento, que tem de ser capaz de travar ou acelerar, virar à direita ou à esquerda, recuar, ter iluminação, etc., consoante o aleatório do tráfego. Se compararmos a máquina, invenção capital das sociedades contemporâneas, com a ousia dos vivos, podemos dizer que: a) liga a propriedade dos vivos – ter o movimento por si – com a dos inertes, concilia a Physica e a Física; sendo viável em ambos os casos, o duplo laço poderá ser susceptível de conciliar as ciências exactas e as ciências dos vivos; b) a cena do tráfego, que faz a doação dos carros[46], o contexto do movimento, é parte do duplo laço, não lhe fica de fora (como o da ousia, por definição); os engenheiros no laboratório têm os olhos fora, na cena, donde que tudo o que, visível, audível, tacteável, é peça do carro tratada laboratorialmente, não é ‘acidental’; c) a relação entre as regras rigorosas com que os duplos laços são constituídos em suas peças contrasta, de uma forma que suscita o espanto filosófico, com o aleatório essencial a que o funcionamento delas é destinado. É o determinismo (motivo substancialista) que é posto em questão, quando se percebe que as regras científicas, descobertas fragmentariamente em laboratório, uma a uma, se jogam ao nível teórico do engenheiro, da globalidade do movimento do fenómeno, em cenas aleatórias fora do laboratório: regra (ou lei) faz parceria com aleatório, aonde joga (motivo derridiano, §11 final) necessariamente a finalidade que o laboratório proscreveu: a re(pro)dução, que é a regra geral dos vivos, implica nela mesma uma finalidade iterativa, sempre sujeita a ser alterada devido a acontecimentos.

Os princípios dos dois tipos de matéria: o átomo e a célula
17. Para terminar, tratar-se-á duma breve exposição dos principais duplos laços, que se enlaçam sucessivamente uns nos outros na evolução da vida e da história a partir da matéria inerte astral, supondo (moléculas de) átomos constituídos a partir dum núcleo de protões e neutrões, primeiro laço devido a forças nucleares, ligados a electrões, segundo laço devido a forças electromagnéticas. O primeiro é irredutível, nas condições terrestres de pressão e temperatura, à força da gravidade e à transformação química, garante assim a impenetrabilidade dos átomos de todos os graves, inclusive gasosos; os electrões, ao contrário, são susceptíveis de se ligarem a outros electrões, formando moléculas simples ou compostas (forças intra-moleculares) e depois graves (forças extra-moleculares) como rochas, mares, atmosferas, os quais são ligados nas suas posições pela força da gravidade do planeta. Tudo o que merece o nome de ente em filosofia, de ‘coisa’ em fenomenologia, releva primariamente destes duplos laços definindo a matéria, desde os átomos aos astros. A mecânica quântica ocupa-se de infra-matéria, de partículas aparentemente não susceptíveis de fenomenologia.
18. Houve na terra a primeira grande novidade com a invenção da célula. O que nesta chamo duplo laço foi descoberto nos anos 50 do século passado: ao núcleo das células eucariotas, ocupado pelo ADN em cromossomas, corresponde o primeiro laço, ao metabolismo – com seus ribossoides[47] – no citoplasma que uma membrana delimita corresponde o segundo laço. A importância de se perceber que se trata dum duplo laço é a do papel do ADN ser limitado à regulação do metabolismo, sem o qual ele não existe[48]. A diferença morfoló­gica do átomo e da célula[49] pode ser dita assim. Os graves que aparecem ao nível da obser­vação são constituídos por moléculas homogéneas, cujo núcleo atómico garante a inércia como a sua autonomia possível: ‘resistência’ do impenetrável à desagregação e ‘disponibilidade’ dos electrões a ligações químicas com outros em proximidade conve­niente; enquanto que nos organismos vivos, que aparecem ao nível da obser­vação, as células são compostas de moléculas diferentes e especializadas nas suas funções, o que permite nos vertebrados a existência de cerca de duas centenas de células de tecidos diferenciados e a extraordinária diversidade das espécies, vegetais como animais. O mundo dos átomos é o que garante a empiricidade radical de cada ente, irredutivelmente não idêntico a outro qualquer; o programa genético é o que torna possível a reprodução, a ‘espécie’ biológica como um nível inédito do mesmo de indivíduos não idênticos, tal como a ‘sociedade’ humana e a ‘língua’. A différance de Derrida joga-se a partir da vida, antes a diferença estabelece-se entre campos de forças e graves ou astros.

Os duplos laços compostos
19. No que diz respeito ao que chamamos história, haverá em termos de duplos laços três novidades principais a partir da evolução dos vivos: a história das sociedades humanas em suas unidades locais de habitação e suas invenções[50], a da escrita alfabética e a da máquina. O critério fenomenológico que decide do que é novidade, consiste nos respectivos laços ‘retirados’ que conhecerão, tal como o átomo e a célula[51], desenvolvimentos mais complexos e especializados de duplos laços compostos, com a ressalva de que a escrita alfabética supõe as línguas prévias e a máquina beneficiará fortemente da invenção da electricidade, que nela mesma – corrente de electrões – não parece relevar de duplo laço. O que é interessante nesta sucessão de evoluções históricas é que as fronteiras das diversas ciências não intervêm nelas, continuam-se umas às outras deixando ver que os ‘cortes’ relevam das reduções científicas inerentes aos laboratórios.
20. Enquanto que as plantas, que nunca estudei, parecem ter um único sistema, o da alimentação de todas as suas células a partir da fotossíntese, os animais, além do esqueleto e da sexualidade, têm um duplo sistema, o da alimentação e o da mobilidade. O primeiro forma um duplo laço entre as células e a circulação do sangue que as alimenta, mas por sua vez constitui o primeiro laço (sistemas digestivo, respiratório, circulatório, etc) de que o sistema da mobilidade é o segundo, o cérebro neuronal (e seu equivalente nos invertebrados) articulando-os a ambos, no cuidado da homeostasia sanguínea e no desencadear da caça, espicaçado pela hormona da fome. Neste novo duplo laço, o sistema de alimentação, retirado da cena ecológica, dá o movimento; o da mobilidade, dos órgãos periféricos de sensibilidade aos músculos pelo sistema dos nervos e do cérebro, regula as buscas de comer e beber, respiração e repouso de maneira protegida. A formação dum neo-cortex cerebral nas aves, alguns répteis e mamíferos, deixa ao paleo-cortex as funções endócrinas e abre um espaço para maior complexidade das funções estratégicas na cena ecológica. Se a pele é o limite do organismo, é óbvio todavia que qualquer animal é um ser no mundo (com pouco mundo, dizia Heidegger) onde busca alimento e protege-se de ser alimento de outrem. Ora, é neste neo-cortex que se vão inscrever por aprendizagem os grafos dos usos sociais, criando-se assim um novo duplo laço de ordem social: ora, estes grafos cerebrais feitos a partir do que se aprende dão neurologicamente conta da intencionalidade husserliana, já que a consciência vai à coisa porque já a tem, porque aprendeu a usá-la.
21. O paradigma de usos liga e regula os indígenas – pela aprendizagem – na sua unidade social, esses usos colectivos devendo garantir prioritariamente o movimento de reprodução de cada um: alimentação e protecção, que é por onde eles são ‘atractivos’, na definição de Kuhn[52], generalizável fenomenologicamente a qualquer unidade social. A linguagem tribal faz parte do paradigma, diz as receitas dos usos e as regras dos costumes, usos e costumes sendo equivalentes nas diversas unidades duma mesma tribo, que um laço político entre todas unifica, fazendo duplo laço com os paradigmas reguladores das unidades (que fazem duplo laço com os usos indígenas que dão o movimento à unidade). São estas unidades sociais que dão o movimento quotidiano da tribo, seu laço ‘kinoun’ enlaçado com o sistema do parentesco que, digamos a nível ‘político’, regula conflitos eventuais entre unidades de habitação e actividades de conjunto (festas, caças, pescas...), nomeadamente as guerras. A linguagem, que é decisiva nestes duplos laços sociais, introduz um tipo novo de duplo laço, retendo um sistema de fonemas acordado às capacidades de fonação, laço que dá a voz de cada um e que se desdobra num segundo laço de frases com palavras, ‘aparelho’ regulador do sentido dos sons produzidos pela voz, retirada na intimidade de cada um.
22. As transformações das sociedades fazem-se pelas transformações dos paradigmas dos usos que unem as unidades sociais, as quais terão o papel de ‘motor’ social, sendo que a invenção da agricultura trouxe o princípio da especialização de unidades – casas, unindo parentesco e actividade económica –, a maioria sendo de agricultores e nas cidades de artesãos; foram as casas de guerreiros nobres que, devido à generalização da lei da guerra e à consequente escravatura, ganharam a função do laço político, com proeminência da casa real; enfim, os templos religiosos, correlativos da incerteza dos humanos sobre as fecundidades dos campos, dos rebanhos e das mulheres, sobre as saúdes e os resultados das guerras, garantiam a relação ancestral que dá sentido ao conjunto.

A cena do conhecimento: tribal e cosmopolita
23. Ora, a invenção da escrita alfabética trouxe uma novidade baseada no sistema de letras correspondentes aos fonemas das línguas orais: a criação de unidades sociais em torno da escrita e leitura de textos gnosiológicos com definição e argumentos sobre essências intemporais, as escolas gregas[53], a Academia e o Liceu tendo estado na origem duma história escolar que, após uma longa aliança teológica com a igreja medieval, deu origem, juntamente com o direito romano, à instituição das universidades. A indústria da impressão de livros, o desenvolvimento escolar, o laboratório científico, resultam no aflorar duma linha histórica de escritos filosóficos e científicos cujos duplos laços (letras, palavras, frases, textos) se enxertarão em indígenas alfabetizados das casas e tornarão possível, quer a invenção da máquina a vapor e depois da electricidade que dividirá as ‘casas’ de antanho entre instituições de empregos e famílias, quer as revoluções políticas subsequentes, quer a escolarização generalizada das populações, quer ainda o prolongamento dos livros e jornais por médias[54] sonoros e de imagens. Como é que os livros (com a escola) se enxertam nos duplos laços do conhecimento dos indígenas contemporâneos? Cada um conhece bem, sem lugar a cepticismos, aquilo que aprende na sua tribo que, hoje em dia, consiste na família, escola ou emprego, além dos seus prolongamentos em gente conhecida, a quem se aperta a mão ou diz ‘bom dia!’, que é o ‘mundo’ em que se é ‘ser no mundo’; conhece bem, aprendendo sempre, porque se trata de coisas que se vêem, ouvem nomear e em que se mexe habitualmente, mais ou menos espontaneamente. Nos empregos, hoje praticamente sempre especializados, faz parte desse conhecimento tribal que os livros e revistas que se lêem são trabalhados em função das tarefas a que dizem respeito, seja em dados numéricos, seja em argumentos, e pertencem pois, em princípio, ao conhecimento relativamente seguro que se tem. Fora destes casos, os médias em geral incluindo os livros, jogam na esfera do lazer, sem resposta das mãos nem da voz dos indígenas, o seu enxerto no conhecimento do mundo de forma genérica, extra tribal, pode ser contrastado com o conhecimento tribal pelo termo cosmopolita, de forma mais sujeita a enganos, quer da parte dos indígenas, quer dos próprios médias. É esta a zona mais propícia a dúvidas e a controvérsias, embora a sua distinção em relação à cena tribal do conhecimento não seja simples, consoante a proximidade das questões. Mas o que vem como cosmopolita ganha força, no sentido do que chamamos ‘uma pessoa culta’, do próprio valor do conhecimento tribal, do que há nele de ‘trabalhado’. Observação esta que, em tempos de relativismo dominante, nos permite uma indicação sumaríssima sobre a questão da verdade, para um cientista e para um filósofo. Para o primeiro, a verdade joga-se na relação teoria / experiência, adentro do paradigma, é pois da ordem do laboratorial. Fora deste, é reconhecível, até para os leigos, pelas suas incidências nos contextos quotidianos: assim as técnicas obviamente, diminuídas apenas pelas poluições que não sabem evitar. Para o segundo, a falta de experimentação torna a coisa mais complicada, já que os efeitos que o discurso filosófico pode ter em seus leitores – hoje quase sempre de especialistas para especialistas – são da ordem da comunidade que os argumentos conseguem criar como ‘escol’, como sempre foi ao longo da sua história[55]. Foi assim desde Platão que teve como discípulo um crítico dissidente, como ele próprio assinalou no Parménides (135c): a oscilação entre ambos na história do Ocidente mostra bem que não houve um critério de verdade imanente à filosofia saída da definição. Pode ser todavia que este embrião de filosofia com ciências receba destas algo como uma unificação filosófica sistemática na compreensão das coisas do universo que mereça o tão difícil epíteto de ‘verdadeiro’.

A liberdade como enigma
15. Esta sistematização assenta na indeterminação geral dos entes, de tudo o que se move – por si nos vivos, provocado nos inertes –, a qual se torna cada vez mais indeterminada com a respectiva complexidade anatómica. Nos humanos, convergem os jogos das diferentes cenas científicas, biológico e neurológico, antropológico e linguístico, especializado e cosmopolita, que o que se chama psicologia teria o propósito, cientificamente impossível, de abarcar e unificar. A psicanálise criou o seu laboratório no divã, em que se deve suspender todo o mecanismo de pertinência (bom senso e decência) e dissimulação como defesa social, para a análise da auto-biografia escondida ao próprio sujeito, que por via da interpretação dos sonhos acede ao que, retirado da consciência, Freud apelidou de “inconsciente” em suas facetas (id, ego, superego)[56] – indissociáveis e inconciliáveis com – dão o movimento ao saber “consciente” que governa, regula como pode, as relações com os outros humanos na cena social. Ela é assim entre as disciplinas psicológicas aquela que oferece a coerência fenomenológica dum duplo laço, que se adequou à crescente complexidade da indeterminação de cada um nas sociedades hodiernas, globalizadas em mecanismos cosmopolitas e redes sem fim, mas já na mais simplória das tribos se pode reconhecer em cada indígena a tão complexa indeterminação dos humanos como enigma, aquele que merece o belo nome de liberdade: nunca se sabe o que o outro vai dizer, vai querer fazer. Em política, a esta indeterminação enigmática só pode corresponder a democracia, o regime da razão e do respeito de todos por essa liberdade, inédita de cada vez nas suas mais humildes manifestações.



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[1] Martin Heidegger, Être et Temps, [1927], traduzido por E. Martineau. Edição fora do comércio, 1985
[2] Martin Heidegger, "Temps et être" [1962, 1969], Questions IV, traduzido por F. Fédier, Paris. Gallimard, 1976
[3] Jacques Derrida, De la Grammatologie, Paris. Minuit, 1967
[4] Jacques Derrida, Glas, Que reste-t-il du savoir absolu ?, Paris. Galilée, 1974
[5] Jacques Derrida, La Carte postale, de Socrate à Freud et au-delà, Paris. Flammarion,1980
[6] Edmund Husserl, L’origine de la Géométrie, introduction de J. Derrida, Paris. P. U. F., 1962

[7] Jacques Derrida, Glas, Que reste-t-il du savoir absolu ?, Paris. Galilée, 1974
[8] Jacques Derrida, La Carte postale, de Socrate à Freud et au-delà, Paris. Flammarion,1980
[9] O critério de discernimento é o do doador retirado do movimento, respectivamente : o núcleo do átomo, o ADN, o interdito do incesto nas unidades sociais, o sistema dos fonemas (letras) duma língua e o inconsciente.
[10] Claude Lévi-Strauss, Les Structures élémentaires de la pa­ren­­­té, Paris. P.U.F., 1949
[11] Ferdinand de Saussure, Cours de Linguistique Générale, ed. critique T. de Mauro, Paris. Payot, 1972
[12] André Martinet, Éléments de Linguistique générale, Paris. Armand Colin, 1967
[13] Aristote, Organon. I. Catégories, tradução e notas J. Tricot, Paris. J. Vrin, 1977
[14] Aristote, Physique, ed. bilingue, traduzido por H. Carteron, Paris. Les Belles Lettres, 1952-56
[15] Aristote, Les Parties des Animaux, ed. bilingue, traduzido por P. Louis, Paris. Les Belles Lettres, 1956
[16] Aristote, Sur la génération et la corruption, traduzido por Ch. Mugler, Paris. Les Belles Lettres, 1966
[17] Aristote, De l’âme, tradução e notas por E. Barbotin, Paris. Les Belles Lettres, 1966
[18] Aristote, Poétique, ed. bilingue, trad. et com. R. Dupont-Roc et J. Lal­lot, Paris. Seuil, 1980, que define  no seu cap. 6 a ousia da tragédia.
[19] Isaac Newton, Principes mathématiques de la Philosophie natu­relle, traduzido por Mme Châtelet, edição fac-simile de A. Blanchard, Paris. 1966
[20] Martin Heidegger, Être et Temps, [1927], traduzido por E. Martineau. Edição fora do comércio, 1985
[21] Se se pode pensar que a Physica de Aristóteles é uma crítica incipiente dessa dualidade ontoteológica, haverá que admitir que o tomismo, ao recuperar o pensamento do Estagirita, entendeu a substância / essência de forma metafísica, com o movimento como acidente (Gilson, Étienne. Le Thomisme, Introduction à la philosophie de Saint Thomas d’Aquin, J. Vrin, 19475 [ cours de 1913-4]: 47). Residirá aí possivelmente que, movimento e história sendo secundarizados face às idealidades gnosiológicas, o ‘tempo’ tenha vindo a isolar-se do movimento (de que era a medida segundo o anterior e o posterior na Physica) e a fazer na Física par com o ‘espaço’ (o qual, por sua vez enquanto medida, substitui o ‘lugar’ das coisas dos Gregos), par que apenas alcança o movimento como deslocamento.
[22] Jacques Derrida, De la Grammatologie, Paris. Minuit, 1967 : 12
[23] Era já, à sua maneira biológica, a lógica da demonstração de Charles Darwin, A origem das espécies por meio da selecção natural ou a luta pela existência na natureza, traduzido por Joaquim Dá Mesquita Paul, Estarreja. Mel editores, 2009
[24] Martin Heidegger, "Temps et être", Questions IV, traduzido por F. Fédier, Paris. Gallimard, 1976
[25] Heidegger, Martin. Être et Temps, [1927], traduzido por E. Martineau. Edição fora do comércio, 1985

[26] Jacques Derrida, De la Grammatologie, Paris. Minuit, 1967 : 93.
[27] Ferdinand de Saussure, Cours de Linguistique Générale, ed. critique T. de Mauro, Paris. Payot, 1972
[28] ‘-grama’ é ‘escrita’, em grego, donde ‘gramatologia’.
[29] Jacques Derrida, De la Grammatologie, Paris. Minuit, 1967 : 103
[30] Fernando Belo, “Porque é que as ciências precisam de laboratório ?” no blogue filosofia mais ciências 2, 2/12/2013
[31] Os efeitos secundários dos medicamentos, a poluição, são o resultado fora do laboratório dos limites deste, efeitos que não foram, não podiam ser analisados.
[32] Que não tem nada a ver com o ciclo dos carvões e petróleos.
[33] Fernando Belo, “A evolução entre biologia e bioquímica, entre Darwin e M. Barbieri”, no blogue filosofia mais ciências 2, 6/8/2017
[34] Claude Lévi-Strauss, Les Structures élémentaires de la pa­ren­­­té, Paris. P.U.F., 1949
[35] As sociedades industrializadas acrescentaram uma outra rede, a das instituições de trabalho, cujo peso veio a provocar a crise das famílias dos anos 60 e 70.
[36] Que não se conseguiu, segundo François Dubet et Danilo Martucelli, Dans quelle société vi­vons-nous?, Paris. Seuil, 1998 : 21-23
[37] Caução da Bíblia em Gn 4 (Cain e Abel), de Aristóteles, Poética 1453a17-22 (as tragédias acontecem nas casas nobres), de Sigmund Freud, [1900], Traumdeutung / La interpretacion de los sueños, traduzido por L. Lopez-Ballesteros y de Torres, revista por Freud, Madrid. Alianza, 1966, 2º volume : 93-96 (os sonhos de irmãos são de rivais).
[38] Jacques Derrida, Marges, de la Philosophie, Paris. Minuit, 1972 : 7
[39] Galilée, Galileo. Discours et démonstrations mathémati­ques con­cernant deux sciences nouvelles, introd., traduzido por e notas de M. Clave­lin, Paris. A. Colin, 1970 : 144
[40] François Jacob, La logique du vivant, une histoire de l’hérédité, Paris. Gallimard, 1970
[41] Jacques Monod, Le hasard et la nécessité. Essai sur la philosophie naturelle de la biologie moderne, Paris. Seuil, 1970
[42] Jacques Derrida, Marges, de la Philosophie, Paris. Minuit, 1972 : 5
[43] Jacques Derrida, Marges, de la Philosophie, Paris. Minuit, 1972 : 20
[44] A estatística não é uma matemática exacta em seus cálculos, que supõem operações aritméticas mas não equações algébricas aplicáveis aos seus dados, como sucede em física e em química.
[45] Martin Heidegger, "Ce qu'est et comment se détermine la Physis", [1940] in Questions II, traduzido por F. Fédier, Paris. Gallimard, 1968
[46] A cena do tráfego implica, além das estradas e dos outros carros, fábricas, oficinas, stands de venda, sistema de abastecimento, seguros, banca, código da estrada, polícia...
[47] Marcello Barbieri, Teoria Semântica da Evolução, traduzido por Mª. L. Pinheiro, Lisboa. Fragmentos, 1987 : 113
[48] Mesmo nos vírus que precisam do metabolismo de outras células.
[49] Além das dimensões, obviamente, mas ambos a nível microscópico (critério ‘biológico’), salvas algumas células excepcionalmente grandes.
[50] Mormente a agricultura e a criação de gado como controle da ‘lei da selva’ pelos humanos.
[51] No átomo e na célula não se pode falar em ‘motor’, os respectivos primeiros laços não dão movimento por si sós.
[52] Thomas Kuhn, La structure des révolutions scientifiques, traduzido por L. Meyer, Paris. Flammarion, 1983 : 30-31
[53] Além das sinagogas, igrejas cristãs e outros cultos orientais no helenismo romano.
[54] Que é como se deve dizer em línguas latinas, ‘média’ é americano, língua que não forma o plural com s.
[55] Ao invés do discurso teológico cristão que, aquém da sua conceptualidade filosófica grega, tem da origem narrativa judaica um critério de experimentação decisivo, o da exigência do amor do próximo como a si mesmo (no tribal pois), a coisa mais difícil que há no mundo.
[56] Sigmund Freud, "Au-delà du principe de plaisir" [1920], "Le moi et le ça", [1923], in Essais de Psychanalyse, traduzido por S. Jankélévitch, Paris. Payot, 1968

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